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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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trinta contos de réis. Para que esse desperdício? Têm um<br />

Auburn grande, chega bem para todos, já é até demais. E a<br />

gasolina? É o empregado para cuidar do carro? E os<br />

consertos?<br />

A criada entra com a sobremesa.<br />

Zé Maria palita os dentes, feliz. Chinita estuda no<br />

espelho uma pose cinematográfica. Disseram-lhe uma vez que<br />

ela era parecida com Ana May Wong. No outro dia ela<br />

começou a usar franja.<br />

— Severina, guarde um prato pro seu Manuel.<br />

— Sim senhora.<br />

Chinita se levanta, vai ao hall e põe o rádio a funcionar.<br />

Fraca e remota a princípio, mas definindo-se aos poucos, a<br />

melodia de um fox invade a sala. Chinita começa a dançar.<br />

Willy, de cima da escada, olha para ela com o rabo dos<br />

olhos. Da varanda vem a voz de D. Maria Luísa:<br />

— Chinita, olha que faz mal a gente fazer exercício<br />

depois da comida.<br />

— Ora, mamãe! Bobagens!<br />

E agita-se ao ritmo do fox, os seios lhe tremem como<br />

gelatina, os braços como que riscam desordenadamente o ar,<br />

os pés ágeis se movem sobre o parquê. O coronel, da porta, lhe<br />

sorri, o guardanapo ainda amarrado ao pescoço. Chinita salta<br />

— oh boy! reboleia as nádegas, cada vez mais tomada pelo<br />

frenesi da dança. Faz de conta que o pintor e papai são uma<br />

platéia, faz de conta que ela é Ruby Keeler. Faz de conta...<br />

Sentada ainda à mesa, Maria Luísa pensa num dia de<br />

Jacarecanga: Zé Maria jogando paciência e pitando um crioulo,<br />

ela fazendo croché, Manuel no bilhar, Chinita passeando na<br />

frente da casa com as filhas do coletor.<br />

Zé Maria contempla a filha que dança, depois olha em<br />

torno e pensa, com a alma banhada de felicidade: “Eu só<br />

queria era ver a cara do Madruga!”<br />

O mesmo sol que faz faiscar o grande vitral do refeitório<br />

do Cel. Zé Maria Pedrosa entra pela janela do quarto de<br />

Fernanda, na Travessa das Acácias.<br />

Fernanda descansa. Mais alguns minutos e chegará a hora<br />

de sair de novo para o trabalho.<br />

Recostada na cama ela vê, do outro lado da travessa, o<br />

quarto do Prof. Clarimundo. Quando ele aparecer ali na janela,<br />

de palito na boca, a vizinhança toda pode ter a certeza de que<br />

faltam dez minutos para uma hora, tão pontual como o<br />

melhor, relógio do mundo. Chova ou brilhe o sol, domingo ou<br />

dia útil — sempre à mesma hora o professor vai ruminar à sua<br />

janela, lá no alto da casa da viúva Mendonça.<br />

Num torpor bom, Fernanda deixa-se estar deitada, agora<br />

com os olhos voltados para o teto. Se ela pudesse ficar assim<br />

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