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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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creiom nas sobrancelhas, bâton nos lábios, — e vai para a<br />

janela.<br />

Ele já está lá na esquina, como de costume a esta hora, e<br />

seus olhos estão voltados para ela. Cumprimenta-a com<br />

discrição, tirando o chapéu num gesto recatado, com uma<br />

pequena curvatura. Ela inclina a cabeça. E, tendo entre ambos<br />

a largura duma rua, duma calçada e dum jardim de cinco<br />

metros, ficam a se olhar, como um par de jovens namorados.<br />

Como no tempo em que eu era moça — pensa Virgínia.<br />

Um bonde passa. Ela recua um pouco e fica protegida<br />

por uma das folhas da janela. Pode vir algum conhecido no<br />

bonde... E quando o elétrico passa, num clarão amarelo e numa<br />

trovoada, ela volta a debruçar-se à janela. Alcides passeia na<br />

calçada, dum lado para outro.<br />

Ao menor ruído que se produz na casa, Virgínia se volta,<br />

sobressaltada.<br />

Bem como antigamente — pensa ela — bem como no<br />

tempo de moça.<br />

O sol aos poucos desce no horizonte. As sombras<br />

crescem. E se avoluma no peito de Virgínia um quente,<br />

alvoroçado desejo de amor.<br />

A baratinha corre pela faixa de cimento que margeia o<br />

rio, rumo da Tristeza. Contra o clarão purpúreo e dourado do<br />

horizonte se recorta a silhueta negra das montanhas e das<br />

ilhas. Redondo e vermelho-bronzeado, o sol vai descendo. O rio<br />

capta as cores do céu. Segurando o volante, cabelos ao vento,<br />

Salu diminui a marcha do carro e contempla a paisagem. A<br />

cidade envolta por uma névoa azulada é uma ponta que<br />

avança Guaíba adentro, uma massa violeta de recorte<br />

caprichoso, com faiscações e manchas claras. Uma chaminé<br />

solta fumaça para o céu. Os trapiches de pernas longas se<br />

refletem tremulamente na água do rio, que é negra e lustrosa<br />

junto das margens.<br />

Do lado esquerdo da estrada aparecem chalés e bangalôs,<br />

quintas e pomares, barrancos sangrentos vertendo água, cerca<br />

com mourões de granito, árvores isoladas. Às vezes um<br />

cachorro salta de dentro dum jardim e sai a perseguir o<br />

automóvel, latindo furiosamente.<br />

Na ponta dum trapiche um rapazola em mangas de<br />

camisa pesca com caniço. À porta dum clube de regatas dois<br />

remadores conversam; camisetas verdes, maiôs justos, braços,<br />

coxas e pernas à mostra.<br />

Salu vai num adormecimento... A marcha do carro é<br />

macia. A tarde, morna. Chega-lhe às narinas um cheiro fresco<br />

de mato. Cartazes anunciam terrenos em praias novas: Guaíba,<br />

Espírito Santo, Belém Novo, Ipanema... Na encosta dum morro,<br />

em meio da massa verde-escura do arvoredo, berra o telhado<br />

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