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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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As luzes do lustre estão apagadas. Junto da poltrona uma<br />

lâmpada de quebra-luz verde (para sintonizar com o verde das<br />

paredes e do gobelim) cria uma área luminosa dentro da qual<br />

se desenha a cabeça de Vera: cabelo à la homme, boca<br />

grande, olhos graúdos, um nariz levemente arrebitado.<br />

Teotônio contempla a filha com afeição. Aqui tudo é<br />

diferente. Respira-se um ambiente familiar, puro e insuspeito.<br />

A madeira dos móveis, os tapetes, os gobelins despedem um<br />

cheiro característico, cheiro de lar confortável, cheiro<br />

doméstico, cheiro tranqüilizador. Teotônio pendura o chapéu<br />

no cabide e entra. Vera ergue os olhos:<br />

— Olá! — Tem uma voz de contralto. — Vieste tarde,<br />

Mamãe está aflita.<br />

— Aquele maldito escritório...<br />

Vera sorri e torna a baixar os olhos para o livro.<br />

No living-room Teotônio encontra a mulher.<br />

— Meu filho, eu já estava em alas!<br />

Dodó precipita-se para o marido e beija-lhe a testa.<br />

Examina-o atentamente, com a cabeça inclinada para<br />

um lado. Coitadinho! Muito trabalho? Oh! Precisas mudar de<br />

vida, cuidar desse coraçãozinho!<br />

Teotônio Leiria sorri com melancolia e se despreza mais<br />

uma vez. Como é que um homem casado com uma criatura<br />

como esta, meiga e santa, tem a coragem de freqüentar casas<br />

de tolerância? Como é, seu Teotônio?<br />

O living-room está fartamente iluminado: móveis polidos,<br />

almofadas fofas, espelhos, cristais, vasos com flores. Oh! É<br />

preciso este deslumbramento, esta paz doméstica para apagar<br />

a impressão daquela rua pobre, daquele quarto sórdido. Mas<br />

nos olhos de Leitão Leiria brilha, muito tênue, a saudade do<br />

corpo de Cacilda. Enfim ninguém é piloto de seus<br />

pensamentos. Ai! As contingências humanas...<br />

— Dodó, minha querida, eu quero um banho.<br />

Sim, um banho. Com o banho desaparecerá o último<br />

vestígio do pecado. A alma permaneceu pura, não participou<br />

do ato iníquo. Agora é preciso limpar o corpo.<br />

— Mas, meu filho, anda ligeirinho, sim? O jantar está<br />

pronto...<br />

— Não demoro.<br />

— Temos de andar depressa porque às oito preciso estar<br />

no Metrópole, tu compreendes, tudo está nas minhas mãos, se<br />

eu não dirijo, não sai nada certo...<br />

Teotônio compreende. Fiscalizar as tendas, ver se não<br />

falta nada, telefonar para o diretor da orquestra, pedindo que<br />

os músicos apareçam na hora, dar instruções aos garçons...<br />

— Ah Dodó! Se não fosse você...<br />

Teotônio rompe a elogiar a esposa. É uma maneira de se<br />

redimir um pouco do pecado que cometeu.<br />

— Se houvesse duas Dodós nas Damas Piedosas,<br />

teríamos mais hospitais e asilos...<br />

— Não diga isso, meu filho...

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