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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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72<br />

— Que é que a gente vai fazer?<br />

A pergunta de Laurentina cai no silêncio úmido como<br />

uma voz de náufrago perdido. E a voz se esvai no ar. O mar<br />

não tem mais fim. Por cima, o céu impiedoso. Não se avista<br />

terra. Nenhum navio nas proximidades. E os companheiros do<br />

naufrágio que estão com Laurentina na jangada são silenciosos<br />

e inúteis.<br />

— Hein? — insiste ela. — Que é que a gente vai fazer?<br />

Uma hora. Ninguém ainda falou em almoçar. As goteiras<br />

pingam agora dentro das latas transbordantes. O soalho da<br />

varanda está ensopado, a água começa a invadir o quarto de<br />

dormir onde Poleãozinho folheia uma revista velha. João<br />

Benévolo, enrodilhado em cima da cama, anda perdido pelo<br />

seu mundo glorioso e impossível. Laurentina torna a fazer a<br />

pergunta e espera.<br />

— Pois é... — diz João Benévolo com ar remoto. — Pode<br />

ser que hoje o Dr. Pina resolva...<br />

No íntimo ele sabe que o Dr. Pina nunca resolverá nada<br />

pela simples razão de que o Dr. Pina não existe. E é estranho,<br />

muito estranho... Apesar da necessidade, apesar da ameaça da<br />

miséria, intimamente, profundamente, ele tem o desejo de que<br />

as coisas continuem assim, sempre assim... É doloroso, não há<br />

dúvida... Melhor seria se a gente tivesse um palácio,<br />

automóveis, criados, roupas boas, perfumes... Mas já que se é<br />

pobre, o melhor é poder ficar quieto, de pernas cruzadas,<br />

pensando em coisas, pensando...<br />

Laurentina não acredita no marido nem nas promessas<br />

do Dr. Pina, um homem que ela nunca viu. E se esse tal doutor<br />

das promessas fosse uma invenção, puramente, simplesmente<br />

uma invenção de João Benévolo? Oh! Mas seria o cúmulo se o<br />

marido além de molóide desse agora para mentiroso.<br />

Napoleãozinho sorri para uma história do Pato Donald.<br />

Laurentina torna a baixar a cabeça. João Benévolo, embora a<br />

fome esteja a lhe dar cãibras no estômago, se compraz com<br />

imaginar que um dia se levanta de manhã, vai como de<br />

costume ao quintal, vê perto da figueira uma coisa brilhante<br />

no chão, abaixa-se... É uma chapa de ferro. Que será? De noite,<br />

quando todos dormem (a lua cheia ilumina o pátio, as estrelas<br />

palpitam) ele começa a cavar em torno da chapa de ferro.<br />

Cava, cava, cava até que descobre uma grande arca roída de<br />

ferrugem. Abre-a e recua, deslumbrado. Dentro da arca<br />

faíscam diamantes e dobrões de ouro. Conta tudo à mulher,<br />

em segredo. Fazem planos. Comprar um palácio, dar um<br />

banquete e depois fazer uma viagem... E imediatamente João<br />

Benévolo está já viajando no Neptunia. Mas...<br />

— Janjoca!<br />

A voz dolorida da mulher.<br />

João Benévolo como um náufrago relutante dá às praias<br />

da realidade.

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