Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Benévolo mete a moeda no bolso.<br />
Os olhos de Laurentina ganham um súbito brilho, seu<br />
rosto se inflama e ela grita:<br />
— Mas Janjoca, tu não te mexes! Tu não fazes força! Vai<br />
pra rua! Fala! Pede! Que é que vai ser de nós assim sem<br />
dinheiro?<br />
João Benévolo sente um desfalecimento. Encolhe-se todo<br />
como um aluno tímido diante da professora irritada.<br />
E para dominar esta emoção esquisita que experimenta<br />
— medo, vergonha, mal-estar e uma pontinha de raiva —<br />
começa a assobiar baixinho um trecho do Carnaval de Veneza.<br />
Laurentina aos poucos se acalma. Volta para a máquina<br />
de coser e começa a enfiar a linha na agulha. Enquanto faz<br />
isto, vai falando, mais mansa:<br />
— Se tu quisesses, se tu fizesses empenho, arranjavas<br />
qualquer coisa, nem que fosse um emprego de cinqüenta milréis<br />
por mês...<br />
O tom de voz é tranqüilo mas persistem nele vestígios de<br />
censura.<br />
João Benévolo continua a assobiar — agora mentalmente<br />
— o Carnaval de Veneza.<br />
Da rua vem um ruído macio e ao mesmo tempo pesado.<br />
Soa uma buzina de automóvel. De automóvel fino...<br />
Altera-se a expressão fisionômica de Laurentina, João<br />
Benévolo pára de assobiar e ambos se aproximam da janela.<br />
Duas portas além da casa de Fernanda está parado junto<br />
da calçada um enorme Chrysler Imperial grená. Muito polido e<br />
rebrilhante de metais e espelhos, ali contra a fachada<br />
cinzenta da casa, escurecida de umidade, e com falhas no<br />
reboco, — o automóvel parece um objeto caído do céu. João<br />
Benévolo não pode deixar de pensar:<br />
“E a carruagem de ouro e prata da Condessa de<br />
Montmorency parou na rua suburbana diante da<br />
humilde mansão em que habitava o pintor pobre.”<br />
Ah! Os romances de Gaboriau, Escrich, Ponson du Terrail!<br />
Uma saudade muito tênue turba por um instante a mente e os<br />
olhos de João Benévolo. A voz de Laurentina:<br />
— É o auto da D. Dodó.<br />
— Da mulher do Leitão Leiria? Mas que será que anda<br />
fazendo por estas bandas?<br />
O chofer de uniforme azul com botões dourados desce de<br />
seu lugar, tira o chapéu e abre a porta. Um vulto salta para a<br />
calçada. É uma senhora gorda, vestida de seda azul com<br />
enfeites de renda bege; na cabeça, um chapéu que lembra uma<br />
grande rosca preta e lustrosa. Os seios bastos se projetam<br />
para a frente, como uma marquise a sobressair duma rotunda.<br />
— É ela mesma! — confirma Laurentina.<br />
— Imaginem... — diz João Benévolo. E, mal pronuncia a<br />
palavra, fica a perguntar a si mesmo a troco de que a