Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Aproximam-se do Chrysler cheios dum deslumbramento<br />
tímido: a carroçaria brilhante reflete aqueles rostinhos<br />
maltratados e sujos. O chofer mete a cabeça para fora e grita:<br />
— Cuidado, não botem a mão no carro.<br />
Os guris recuam e ficam olhando de longe, meio<br />
bisonhos.<br />
— Vaca gorda! — murmura Laurentina.<br />
Para esquecer tudo — a sua vida, o automóvel de luxo, o<br />
vizinho tuberculoso e a mulher — João Benévolo começa a<br />
assobiar.<br />
Carnaval de Veneza.<br />
D. Dodó Leitão Leiria entra na casa do doente.<br />
O soalho range a seus pés. O corredor tem um bafio de<br />
porão. Uma mulher mal vestida, de rosto esverdinhado e olhos<br />
sem cor lhe abre a porta.<br />
D. Dodó sorri com doçura.<br />
— Boa tarde. Dá licença?<br />
Faz a pergunta com uma voz fininha e musical, doce e<br />
levemente trêmula. As bichas de brilhantes lhe faíscam nas<br />
orelhas, seus seios arfam e o broche de safira que os enfeita<br />
sobe e desce, ao compasso da respiração.<br />
— Pois não...<br />
A mulher examina, numa constrangida surpresa, esta<br />
criatura faiscante que exala perfumes finos, e seus olhos<br />
parecem perguntar: “Então é verdade que existe gente<br />
assim?”<br />
A presença de D. Dodó responde com ênfase: “Existe:<br />
convença-se.”<br />
Mme Leitão Leiria entra.<br />
— Não repare, é casa de pobre... — desculpa-se a mulher<br />
lívida<br />
Ḋ. Dodó comove-se. A marquise arfa em ritmo mais<br />
acelerado. As bolsas de pele flácida, debaixo dos olhos miúdos,<br />
estremecem. E para tranqüilizar a outra mulher, para<br />
garantir-lhe que ser pobre não é vergonha, ela lhe diz com<br />
evangélica suavidade:<br />
— Jesus Cristo era pobre. Os pobres, Ele disse, serão os<br />
primeiros a entrar no Céu.<br />
— A senhora quer sentar?<br />
D. Dodó faz com a mão um sinal: não, obrigada.<br />
Sala sombria. Uma mesa de pau, três cadeiras, um<br />
armário de madeira sebosa, uma folhinha mostrando uma data<br />
remotíssima, remendos de lata nos lugares onde a pertinácia<br />
dos ratos abriu buracos. Anda no ar um cheiro indefinível. D.<br />
Dodó procura identificá-lo: não consegue: só sabe que é mau.<br />
A mulher magra continua imóvel, esperando.<br />
D. Dodó espalma a mão sobre o peito, entorta a cabeça e<br />
10