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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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que a criada sai, quem fala primeiro é D. Dodó:<br />

— Meu filho, amanhã é a festa deles. Bodas de prata.<br />

Mandaram convite. Não achas que devemos ir, por delicadeza?<br />

O que move D. Dodó não é propriamente um sentimento<br />

de delicadeza. É que ela tem uma curiosidade enorme de<br />

conhecer o palacete que se vai inaugurar. Contam tanta<br />

coisa... Parque, piscina, pinturas suntuosas, mobílias à Luís XV...<br />

Teotônio está pensativo.<br />

— Será direito? Depois do que sabemos...<br />

Seria bonito — pensa ele — romper duma vez, descobrir<br />

as baterias (Teotônio tem predileção pelas imagens<br />

guerreiras), travar combate em campo aberto. Mas Zé Maria é<br />

freguês que gasta em média dois contos por mês na loja:<br />

oitocentos com a família e um conto e duzentos com a<br />

amante.<br />

Toma uma resolução.<br />

— Vamos, como se nada tivesse acontecido. Enfim, a<br />

família não tem culpa das indecências do pai.<br />

Olha para o espelho e sorri para si mesmo, numa autoaprovação<br />

muda.<br />

Na casa do tuberculoso a mulher de rosto de pedra abre<br />

a janela que dá para o quintal. O sol entra alegre. Maximiliano<br />

sorri. Ver o sol é o prazer de todas as manhãs. A luz salta para<br />

dentro, inunda tudo. Depois como que vai recuando quando<br />

entardece. A sombra vem vindo, descendo pela parede; de<br />

tardezinha a luz tem a forma da janela, depois vai minguando<br />

até sumir-se. É uma distração olhar aquilo. Não pode levantarse.<br />

Não acha gosto em ler: as letras do jornal cansam os olhos.<br />

Assim ele se distrai olhando o sol. Quando não há sol, nem esse<br />

brinquedo ele tem... Os filhos correm, a mãe não deixa que<br />

eles entrem no quarto. Maximiliano só lhes ouve o barulho,<br />

riso ou choro, na varanda. A vida rola... Os vizinhos mandam<br />

coisas: doces, leite, pão... Vem às vezes um médico que o<br />

examina com precaução, tocando-o com a ponta dos dedos, de<br />

longe, medroso. E a cara do outro não encoraja.<br />

Maximiliano espera. Os dias são longos. Quando<br />

trabalhava na loja, achava que o relógio andava devagar. Que<br />

dizer da marcha das horas depois que ele adoeceu? Os ruídos<br />

da rua chegam até aqui: buzinas, músicas, vozes. Os raros<br />

visitantes ficam à porta. Ele compreende... Medo do contágio.<br />

Ele sabe, não tem raiva, não se queixa. O que tem é pena da<br />

mulher e dos filhos. O melhor mesmo é que a morte venha<br />

logo.<br />

A mulher não tem serventia, não sabe fazer nada: moça<br />

criada com luxo, apesar de pobre. No princípio tudo correu<br />

bem, viviam relativamente bem com seu ordenado modesto.<br />

Um dia, aquela dor no peito, aquela fraqueza, falta de apetite,<br />

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