24.11.2018 Views

Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Fome. Muito engraçado este mundo. Fartura na maioria<br />

das casas, os restaurantes até botando comida fora... E no<br />

entanto ele aqui, de barriga roncando e doendo, cabeça oca,<br />

burlequeando sem rumo, louco de fome. Bastava-lhe chegar e<br />

pedir: “Estou com fome, me dêem um prato de comida”.<br />

Davam. Brasileiro tem bom coração. Não se nega nada a<br />

ninguém nesta terra, graças a Deus. Deus. Deus bem podia dar<br />

à gente outra sorte. Autos. Palacetes. Por que é que só eu é<br />

que não tenho? Ora, no fim quem sabe se não é assim que está<br />

certo?<br />

Cansado, senta-se num banco da praça e fica olhando<br />

para o céu: nuvens contra o azul resplendente.<br />

Cinco minutos. Vontade de deitar e dormir, dormir e<br />

esquecer. Esquecer de que é casado e que está sem emprego,<br />

esquecer a mulher, o filho, as dívidas, a vida...<br />

Uma vez, num conto, um homem dormiu num banco da<br />

praça e ao despertar deu com um velho de barbas brancas que<br />

o levou para um palácio, dizendo: “Toma, homem, tudo isto é<br />

teu. Passei a vida acumulando riquezas à custa da desgraça<br />

alheia. Hoje quero me redimir. Doute este palácio.” E o<br />

vagabundo ficou morando no palácio. Vida de príncipe,<br />

dinheiro, criados, comidas saborosas, divãs fofos, mulheres.<br />

Mas o pobre-diabo acordou e viu que tudo tinha sido sonho.<br />

João Benévolo acha melhor não dormir. Sonhar... também<br />

se sonha de olhos abertos.<br />

Segue na direção do caís.<br />

O rio fulgura, grandes navios de cascos negros estão<br />

atracados no porto. Guindastes e armazéns. As ilhas verdes, lá<br />

longe. Catraias, dragas, veleiros.<br />

João Benévolo caminha. Tem o cuidado de evitar a beira<br />

do caís. Tonto como está, é perigoso perder o equilíbrio e cair<br />

nágua. O pior é que não sabe nadar...<br />

Envolve-o um vento que cheira a peixe e a umidade.<br />

Marinheiros pintam o casco dum navio.<br />

Viajar. João Benévolo pára e sonha. Vai na proa, o vento<br />

do mar é como este, fresco e cheirando a distância. Céu e<br />

água. Simbad, para onde vais? Onde ficam as ilhas dos<br />

tesouros escondidos? Onde?<br />

— Olha o guindaste, moço!<br />

João Benévolo dá um salto, assustado. O guindaste geme,<br />

pega as cargas à porta dum armazém e as leva para o porão<br />

do navio.<br />

João Benévolo continua a andar. Outros navios,<br />

escotilhas debruadas de latão — Afastem-se das hélices —<br />

mastros, salva-vidas, botes, cordas grossas, cheiro de tinta<br />

fresca.<br />

A claridade é tão forte que João Benévolo tem de olhar<br />

com olhos semicerrados. Dois biguás passam voando bem<br />

baixo, quase a tocar a água. As chaminés e as casas dos<br />

Navegantes se recortam ao longe em silhuetas dum azul<br />

enfumaçado e vago contra o céu claríssimo.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!