You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
O tango argentino continua, o bandônion geme, os<br />
namorados que dançam ficam de olhos compridos, o violinista<br />
baixa a cabeça com amor e quase chega a beijar o<br />
instrumento. O momento é grave. O pistão, o trombone e a<br />
pancadaria estão num silêncio religioso.<br />
“Ele já me terá visto?” — pergunta Virgínia a si mesma.<br />
E sente que o coração bate com força, como há muito não<br />
batia. Isto é um absurdo, simplesmente não pode ser verdade,<br />
é ridículo, inconcebível, no entanto o prazer é tão estranho,<br />
tão requintado, e principalmente tão inesperado...<br />
A senhora da luneta torna a falar:<br />
— ...e banheiro com ladrilhos coloridos... vinte contos...<br />
móveis de jacarandá, candelabros. ..<br />
Os olhos de Alcides encontram os de Virgínia. Ele sorri e<br />
inclina a cabeça num cumprimento polido, faz uma pequena<br />
curvatura. Sorrindo, parece ainda mais moço, pouco mais<br />
velho que Noel. Virgínia pensa no filho. Oh! Isto é um absurdo...<br />
Ela devia negar-se a acreditar. Mas Alcides a contempla com a<br />
insistência de sempre. E seus olhos dizem, pedem tanta coisa.<br />
..<br />
— ...uma Ceia de Cristo de tamanho natural.<br />
A música pára. Alcides sorri ainda.<br />
Da sua meia porta Cacilda olha o beco.<br />
Na esquina o vulto do guarda-civil. Na calçada fronteira,<br />
janelas com luz vermelha, mulheres às portas das casas.<br />
Passam homens: sós ou aos grupos. Uma francesa muito<br />
pintada convida:<br />
— Viens!<br />
Quando um entra, o vulto da mulher desaparece da<br />
janela, que se fecha. Pouco depois o homem sai. Passam-se<br />
alguns minutos, a luz vermelha torna a brilhar, a francesa<br />
reaparece e os convites se repetem:<br />
— Viens, bonitinho.<br />
Cacilda está cansada. Ela não chama... Se quiserem<br />
entrar, que entrem. Acha feio chamar. Só francesa e china de<br />
soldado é que convidam. Ela não.<br />
Num café da esquina berra um rádio, Carlos Gardel canta<br />
um tango. Perto da janela de Cacilda uma mulata gorda<br />
acompanha a melodia, cantarolando.<br />
No meio da rua dois homens discutem, aos gritos.<br />
Aparece um guarda e os acalma. O silêncio volta. A janela da<br />
francesa torna a fechar-se.<br />
— A Liana não tem vergonha — diz a mulata gorda.<br />
Na outra calçada estala uma risada debochada. Cacilda<br />
encolhe os ombros. Que importa? Já ganhou o dia. De manhã<br />
no apartamento do Edifício Colombo. Ao anoitecer, no rendezvous<br />
da Travessa das Acácias. Vem-lhe à mente a cara<br />
22