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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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Claro que não.<br />

João Benévolo começa a caminhar, ruminando a velha<br />

raiva. Aquilo já dura uma boa dúzia de meses. Quase todas as<br />

noites, a visita indesejável. Ponciano fica num canto, os<br />

olhinhos com um brilho de gelo, a respiração difícil. Tina<br />

costura e ele, João Benévolo, lê. O relógio bate horas, oito,<br />

nove, dez... O tempo passa. O olho de Ponciano sempre<br />

chocando Laurentina... João Benévolo olhando para os dois<br />

com o rabo dos olhos, com uma raiva impotente a ferver-lhe<br />

no peito. Vontade de gritar. “Isto também é demais, seu<br />

Ponciano, que é que o senhor quer? Explique-se ou ponha-se na<br />

rua!” Mas Ponciano é um homem de físico forte e tem<br />

dinheiro. Ninguém está livre dum aperto. Sempre é bom ter<br />

um amigo a quem recorrer. Amigo. Toda esta vergonha por<br />

causa da miséria, da falta de emprego...<br />

João Benévolo dobra a primeira esquina e sobe rumo da<br />

parte alta da cidade. A fila de combustores se estende como<br />

um colar de luas. Lá no alto, o Edifício Imperial se recorta<br />

contra o céu da noite: em cima dele o grande letreiro<br />

luminoso brilha — num apaga e acende vermelho e azul — diz:<br />

FIQUE RICO. LOTERIA FEDERAL.<br />

João Benévolo caminha e vai aos poucos esquecendo<br />

Ponciano, a mulher, o seu drama. O letreiro colorido evocoulhe<br />

um conto das Mil e Uma Noites. Agora ele caminha por<br />

uma rua de Bagdá. O perfil das mesquitas se desenha contra o<br />

céu oriental. Ele é Aladim, que achou a lâmpada maravilhosa.<br />

Sim. Fique rico. Basta esfregar a lâmpada, o gênio aparece. Eu<br />

quero um palácio, eu quero um reino, eu quero muito ouro,<br />

escravos e odaliscas.<br />

João Benévolo agora é feliz. E como não tem outro meio<br />

para exprimir o seu contentamento, põe-se a assobiar com<br />

bravura o Carnaval de Veneza.<br />

Fernanda traz para a sala de jantar a bandeja com a<br />

cafeteira, os sanduíches de pão e carne fria e o prato de<br />

mingau para a mãe.<br />

Pedrinho está desinquieto.<br />

— Apura com isso, mana, estou com uma fome do<br />

tamanho dum bonde.<br />

Fernanda sorri por trás da fumaça que sai do bule:<br />

— Já vai, rapaizinho!<br />

Dize r rapazinho não tem graça. Rapaizinho é mais<br />

terno, mais familiar, mais de acordo com a gramática<br />

sentimental da casa.<br />

D. Eudóxia suspira.<br />

— Cuidado, Fernanda, esse bule cai e te queima toda...<br />

Fernanda arruma os pratos, e depois despeja café em<br />

duas xícaras. Senta-se também à mesa e o jantar começa.<br />

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