Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Salustiano dá alguns passos no quarto, sem propósito<br />
certo. O sorriso da rapariga se alarga.<br />
Que homem engraçado! — pensa ela.<br />
De braços cruzados Salustiano examina a companheira<br />
da noite.<br />
Só agora é que vê direito a cara da mulher com quem<br />
dormiu. É uma moça de narizinho redondo, olhos dum verde<br />
esquisito, seios pontudos, cabelos louros. Bem bonita! O sol da<br />
manhã podia ter-lhe revelado a carantonha intumescida e<br />
pintada duma megera. Salu verifica com alegria que a sua boa<br />
estrela ainda continua a brilhar.<br />
A desconhecida contempla-o ainda a sorrir. Contra a luz<br />
desenha-se a silhueta firme do rapaz dentro do pijama num<br />
raio-x tão nítido que ela pode ver até os fios de cabelo que<br />
dão àquelas pernas a aparência dum bicho peludo.<br />
— Como é o teu nome, meu bem?<br />
A rapariga tem um leve sobressalto ao ouvir o som<br />
daquela voz metálica e autoritária.<br />
— Cacilda.<br />
Por alguns segundos Salustiano fica olhando para a coxa<br />
branca e bem torneada que emerge da colcha amarela,<br />
coberta duma penugem que o sol doura.<br />
Procura espantar um desejo traiçoeiro que vem<br />
negaceando, de longe, procurando tomar-lhe conta do corpo e<br />
da vontade. Olha o relógio, que está sobre a mesinha-decabeceira.<br />
Nove horas. Os inquilinos do 10.° andar têm os seus<br />
princípios e os seus escrúpulos... Cacilda precisa sair sem ser<br />
vista.<br />
— Pois é, minha nega — diz ele com delicadeza — agora<br />
vai dando o forinha, sim?<br />
Ela faz um gesto de aquiescência, atira as pernas para<br />
fora da cama, coça a cabeça e pergunta, entre dois bocejos:<br />
— E o teu nome, como é?<br />
— Salustiano... Se tiver preguiça de dizer todo o nome,<br />
diga só Salu. É a mesma coisa.<br />
Cacilda começa a enfiar as meias.<br />
Salu debruça-se à janela. Lá embaixo na rua movimentase<br />
um exército de bichos minúsculos. Correm os bondes de<br />
capota parda; chatos e rastejantes, parecem escaravelhos.<br />
Uma confusão de cores e formas móveis, um<br />
entrebalançamento de fios de aço e de sons. Vermelhos e<br />
pardos, os telhados se estendem ao sol. Coruscam vidraças.<br />
Flutua no ar uma névoa azulada.<br />
Longe se estende o casario raso dos Navegantes, com as<br />
suas chaminés a darem a impressão de troncos desgalhados<br />
duma floresta depois do incêndio.<br />
Salu respira, contente. Enfim, mais um dia começa. Só a<br />
idéia de estar vivo, são e íntegro lhe causa uma alegria<br />
intensa. A vida é boa e a gente nunca deve voltar-lhe o rosto.<br />
É preciso aceitar todas as coisas. Tudo o que Deus fez é bom.<br />
(Ele aceita Deus por comodismo: pensar demais faz mal e