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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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teatro de aldeia. Noel sem compreender bem a proposta do pai<br />

lança-lhe um olhar vazio. Honorato explica:<br />

— Tu já descobriste — (Trincha mais um pedaço de<br />

carne) — ...que não tens vocação para a advocacia... — (Tira<br />

com a faca um grão de arroz que lhe caiu sobre a manga do<br />

casaco) — Precisas arranjar... uma ocupação... Ora, um dia,<br />

quando eu faltar, tu ficas tomando conta do negócio... — (Uma<br />

garfada de comida) — Que achas?<br />

Noel brinca outra vez com a colher, embaraçado. O rapaz<br />

de cabeça oblonga, no côncavo de prata, tem no rosto uma<br />

grotesca expressão de dúvida.<br />

Virgínia intervém:<br />

— Pra que é que um homem estuda dez anos? Pra que é<br />

que tira um diploma? Pra ser bodegueiro como o pai, que<br />

nunca aprendeu nada além das quatro operações?<br />

— Ora, Gigina! — exclama Honorato, quase engasgado.<br />

Mas o seu protesto é convencional: no fundo as alfinetadas da<br />

mulher não o ferem. Ele está habituado...<br />

— Vais botar o teu diploma no escritório, junto com os<br />

sacos de feijão e arroz? — pergunta Virgínia com sarcasmo.<br />

— Ora Gigina!<br />

Honorato cruza os talheres e empurra o prato.<br />

— Eu estou falando sério, quero arrumar a vida do<br />

menino.<br />

— Oh! o pai exemplar! Muito bem! Querubina? — Virgínia<br />

se volta para a criada com o rosto resplendente. — Telefona<br />

pro jornal e diz que eu tenho uma notícia muito boa pra eles:<br />

Pai que se interessa pelo filho. Uma cena comovente.<br />

Desata a rir.<br />

Ela precisa achá-los ridículos e aborrecíveis. Precisa<br />

achar uma justificativa para os seus sentimentos para com<br />

Alcides.<br />

Levanta-se e vai até o quarto tomar uma pérola<br />

Juventus.<br />

Honorato come a sobremesa. Noel olha ainda para a<br />

cabeça oblonga no côncavo da colher. Mas o que ele vê está<br />

em sua memória: a face trigueira de Fernanda, animada por<br />

um sorriso de confiança na vida.<br />

— Papai, eu acho que vou aceitar a sua proposta.<br />

Mal termina de pronunciar estas palavras, admira-se da<br />

própria audácia. Parece que outro falou por ele. Honorato<br />

sorri.<br />

— Pois é. Ficas no escritório. Serviço muito bom.<br />

Correspondência, tal e coisa... Vais gostar. — Bate no ombro do<br />

filho. — Muito bem. Depois conversaremos.<br />

Noel já está de novo na companhia de Fernanda, numa<br />

sala tocada pelo luar. Lá fora os grilos cantam. Como é morna<br />

e macia a mão dela e que gosto estranho têm os seus lábios...<br />

A emoção é tão forte que Noel se levanta brusco e vai<br />

até a janela.

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