24.11.2018 Views

Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

etiro, em Fontainebleau, encontra num quartinho tranqüilo<br />

uma visitante inesperada — a morte.<br />

Katie! Katie! Noel tem a impressão de que ouve, ouve-a<br />

realmente pronunciar as palavras com que terminou o seu<br />

diário: Everything is all right. A voz de Katie é doce, remota e<br />

no entanto misteriosamente clara.<br />

Um cachorro ladra no quintal vizinho e Noel acorda para<br />

o mundo real. Ergue-se devagarinho, põe o livro em cima da<br />

mesa e vai debruçar-se à janela.<br />

O jardineiro está podando as roseiras. Os canteiros que<br />

formam figuras geométricas se recortam, verdes, contra o<br />

ocre avermelhado do chão. Lá debaixo o homem tira o chapéu<br />

de palha e, erguendo os olhos, cumprimenta:<br />

— Boa tarde!<br />

É um caboclo de barbicha rala e cara pregueada de<br />

rugas e Noel responde com um aceno de cabeça. Noca vai até<br />

o fundo do quintal levar comida para os coelhos brancos do<br />

viveiro. (Um capricho recente de Virgínia.) A rapariga caminha<br />

desengonçada, atirando para a frente como uma angolista a<br />

sua cabeça disforme. Noel desvia os olhos: Noca lhe causa um<br />

desgosto irreprimível. E ele se revolta contra esse desgosto,<br />

porque no fundo quisera ser gentil e compassivo para com a<br />

pobre criatura. Isso, porém, é superior a suas forças. Quando<br />

Noca aparece à hora das refeições, é quase certo que lhe<br />

estraga o apetite e faz que ele afaste o prato com uma<br />

expressão de náusea.<br />

Noel estende o olhar para a paisagem. Lá embaixo se<br />

vêem os telhados da Floresta. Mais além, contra um fundo<br />

arroxeado de montanhas, um trecho do Guaíba com lentejoulas<br />

de sol. E quintais, pedaços de rua, sombras lilases, manchas<br />

douradas de luz, faiscações.<br />

Agora o jardineiro abre a manga dágua e começa a regar<br />

os canteiros. O jorro claro se irisa ao sol. Noca volta do<br />

viveiro. As sombras vão crescendo e avançando no quintal.<br />

Noel olha ainda a paisagem por um instante. Depois,<br />

volta para dentro do quarto.<br />

O silêncio continua. Todos estes objetos aqui são como<br />

gênios bons: fazem tudo por manter a ilusão de que dentro<br />

destas quatro paredes cabe inteiro o mundo da fantasia.<br />

Noel vai até o seu gramofone, escolhe um disco, põe-no<br />

no prato, fá-lo girar, ajusta o diafragma e senta-se de novo na<br />

poltrona.<br />

De dentro da caixa de madeira a música salta num jorro<br />

luminoso, a melodia se retraça no ar num arabesco ágil.<br />

Parece que a atmosfera fica mais clara. A luz do sol<br />

desaparece, devorada pela luz maior.<br />

Debussy.<br />

O disco gira. Noel escuta deixando o pensamento correr<br />

ao ritmo da música. Tudo fica esquecido, o jardim, o<br />

jardineiro, a rapariga feia que foi levar migalhas aos coelhos,<br />

os telhados da Floresta, o rio, as montanhas, o céu, tudo, até

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!