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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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afluência do “que a nossa sociedade tem de mais fino e<br />

representativo”. Mas os olhos de Dodó procuram, procuram<br />

uma coisa que ela própria tem vergonha de confessar a si<br />

mesma... Mas procuram assim mesmo. A vaidade é um pecado.<br />

E enquanto os seus olhos passeiam pela notícia, ela procura<br />

não procurar, procura não desejar encontrar, tenta passar a<br />

outros tópicos... É uma luta entre o Anjo da Guarda e Satanás.<br />

O Anjo da Guarda murmura: “Dodó, uma cristã verdadeira não<br />

deve ter vaidades mundanas. Passa adiante, olha a lista de<br />

nascimentos, de óbitos, de viajantes, os programas de cinema,<br />

mas não procures, não procures mais...” Satanás porém, salta<br />

com sua carantonha horrível e diz: “Procura, procura, porque<br />

isso é bom, a gente sente uma coisa agradável dentro do peito,<br />

parece que incha, fica mais contente. Procura, Dodó, que mal<br />

há nisso, que pecado?” Mas o Anjo não abandona a sua<br />

protegida. E vai vencer. Porque Dodó baixa os olhos depressa<br />

para ler outra notícia. Mas é tarde... Ela já viu. Sem querer;<br />

não tem culpa. Ali está o nome dela...<br />

“o nome da Exma. Sra. D. Dodó Leitão Leiria, um dos<br />

mais finos vultos do nosso set, verdadeira figura de<br />

romana, a mãe dos pobrezinhos, uma personalidade a<br />

cuja inteligência, esforço, dedicação e qualidades de<br />

coração devemos a criação da maioria dos nossos<br />

hospitais e asilos...”<br />

A comoção lhe sobe em forma de maçã até a garganta.<br />

Seus olhos se turvam.<br />

Enquanto isso, Teotônio Leitão Leiria, silencioso, de<br />

braços cruzados, olha para o forro e rumina um velho<br />

ressentimento.<br />

— Tônio, meu filho, olha...<br />

A voz de Dodó está trêmula. O seu segundo queixo<br />

também treme. Passa o jornal para o marido, mostrando com o<br />

dedo a passagem comovente.<br />

— Vê como eles são bondosos...<br />

Teotônio lê.<br />

— Dodó, eles não fazem mais que dizer a verdade.<br />

Elogiando assim, Teotônio de alguma maneira está<br />

pedindo desculpas, está se reabilitando da aventura amorosa<br />

da noite anterior.<br />

Aparece no canto do olho direito de D. Dodó uma lágrima<br />

fulgurante, que espia, indecisa, envergonhada e de repente<br />

perdendo todo o acanhamento rola, decidida, face abaixo, indo<br />

morrer no canto da boca.<br />

D. Dodó domina a comoção e continua a ler as notas<br />

sociais. Um baile do Filosofia para a próxima quinzena. Um<br />

garden-party no Excursionista. Acha-se em festa o lar do Dr....<br />

Aniversário...<br />

Teotônio levanta-se e começa a passear dum lado para

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