24.11.2018 Views

Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

vegetação de cinza e criaturas que diziam palavras brancas de<br />

sentido. Abriu cinco livros para fechá-los logo em seguida.<br />

Botou um disco no gramofone. A música lhe deu um pouco de<br />

calor, mas um calor tímido que se fundia no ar, devorado pela<br />

luz neutra desta manhã de chuva. Por fim ficou sentado, de<br />

olhos fechados, caçando recordações.<br />

A casa velha da Rua da Olaria, o colégio, tia Angélica e<br />

as suas histórias. Uma noite de verão. Lua cheia, dessas que<br />

brotam de dentro das florestas encantadas. A casa em<br />

silêncio. Ele via um livro com figuras. Tia Angélica cochilava<br />

a um canto. Pela janela Noel olhou o céu onde de repente uma<br />

estrela caiu, riscando de fogo o fundo azul.<br />

— Tia Angélica! — gritou ele, apontando para fora. — Eu<br />

vi uma estrela caindo.<br />

Então tia Angélica contou a história do fim do mundo.<br />

Deus disse que os homens eram muito maus e que então Ele ia<br />

mandar uma chuva de estrelas para acabar com o mundo.<br />

Derrubou sobre a terra todas as estrelas do céu. Foi uma coisa<br />

tremenda: casas e gentes esmagadas, homens, mulheres e<br />

crianças gritando de medo e dor, muitos ficaram loucos.<br />

Encolhido de susto, Noel arriscou uma observação:<br />

— Como é que o mundo nasceu de novo?<br />

Tia Angélica não explicava. O céu noturno continuava<br />

impassível.<br />

Mas nem as recordações da infância satisfizeram Noel. E<br />

ele está agora aqui com o rosto colado à vidraça, a olhar para<br />

a chuva.<br />

Pensa em Fernanda. A estas horas decerto ela está<br />

trabalhando, escrevendo cartas enfadonhas, aturando as<br />

cretinices do patrão. Ela, uma mulher! Noel se recorda do que<br />

Fernanda lhe disse um dia: Não imaginas como é bom, depois<br />

dum dia aborrecido de trabalho, a gente voltar para casa e<br />

se entregar inteiramente aos livros. Eles assim têm um sabor<br />

diferente, maior, mais profundo.<br />

Noel volta para a sua cadeira, senta-se e fica olhando a<br />

sala quieta. Os livros de lombadas coloridas se enfileiram nas<br />

prateleiras. Nas paredes — os retratos de Debussy, de<br />

Beethoven, de Verlaine, de Ibsen. A vitrola de nogueira, o<br />

rádio. Livros, retratos de homens mortos, discos — Noel está<br />

cansado de fantasmas. O que sente é a necessidade de uma<br />

presença humana, dum ser de carne, osso e sangue, que tenha<br />

um coração, respire, fale, sinta, ame.<br />

Um ser que o desperte, arrancando-o desta prisão e<br />

transformando-o de bicho de concha em pássaro livre para os<br />

grandes vôos. Um ser que, levando-o pela mão... Pela mão,<br />

como Fernanda nas manhãs que iam para o colégio...<br />

E no silêncio do seu gabinete, Noel decide que é preciso<br />

dar um novo rumo à sua vida. Um homem não pode viver<br />

eternamente só. Precisa libertar-se do mundo dos fantasmas e<br />

entrar definitivamente no mundo dos vivos. O tempo passa e é<br />

urgente fazer alguma coisa positiva. Escrever um livro talvez.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!