Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
do bule lhe mostra, Salu lembra-se da sua primeira aventura<br />
de verdade. Ela se chamava Manuela e era filha dum coronel<br />
do exército. Tinha vinte e oito anos e ia casar com um guardalivros<br />
de trinta e sete. Salu tinha dezoito. Amaram-se,<br />
encontravam-se às escondidas. O coronel fazia gosto no<br />
casamento com o guarda-livros. Os pais de Salu se opunham ao<br />
namoro. Mas o romance floresceu. Era na primavera e uma<br />
tarde Salu possuiu Manuela debaixo de pessegueiros floridos.<br />
Fugiu alarmado. A moça passou um mês fechada em casa. Ao<br />
cabo de quinze dias, Salu verificou que sua paixão era apenas<br />
um desejo de aventura. O que ele amava era o amor e não<br />
Manuela. Veio fevereiro e ele voltou para o colégio e para as<br />
outras mulheres. Manuela não teve outro remédio senão ir<br />
para o guarda-livros. E casou-se de véu e grinalda.<br />
Tinha um bonito corpo e lindos olhos — pensa agora Salu,<br />
sorrindo. E vê com a memória Manuela deitada de costas<br />
contra a terra roxa pintalgada de flores rosadas. Mas de<br />
repente a terra não é mais terra, é a relva verde e Manuela se<br />
transforma em Chinita. Um desejo quente começa a apossar-se<br />
do corpo de Salu. Ele se levanta brusco, aproxima-se do<br />
telefone e faz o disco girar quatro vezes.<br />
— Alô? — Pausa. — Alô? — Casa do Cel. Pedrosa? Faça o<br />
obséquio de chamar a Chinita ao aparelho... Não, é um<br />
amiguinho. Ela sabe. Obrigado. — Pausa. Salu esmaga a ponta<br />
do cigarro no cinzeiro, estranhando a própria ansiedade, este<br />
desejo absurdo de ouvir a voz de Chinita, esta vontade<br />
latejante de vê-la de novo, tocá-la, beijá-la... Com o receptor<br />
ao ouvido, Salu percebe ruídos secos de passos ecoando numa<br />
grande sala. Deve ser ela. Alô?<br />
Com as mãos enfurnadas nos bolsos do roupão de flanela,<br />
Noel encosta a testa na vidraça fria e olha para fora. A chuva<br />
cai sobre o seu jardim e sobre os telhados da Floresta. No<br />
fundo do pátio os coelhinhos brancos estão muito juntos,<br />
encolhidos dentro de sua casinhola. O vento sacode as árvores.<br />
Noel sente um grande amolecimento interior, como se<br />
sua própria alma estivesse sendo batida pela chuva.<br />
Tudo cinzento, tudo sombrio. Ainda há pouco, quando<br />
pegou da pena para escrever, a pena era fria, o papel era frio.<br />
As idéias lhe fugiam, esquivas. A sua personagem negava-se a<br />
viver. Inveterava-se na sua atitude parada: olhando da janela<br />
as crianças que brincavam de ciranda na rua. Sempre à janela,<br />
como uma estátua, como uma coisa de pedra, sem calor, sem<br />
alma, sem vida.<br />
Tentou a leitura. Neste dia gris de duas dimensões, nem<br />
os livros têm sentido. As palavras não querem dizer nada.<br />
Parece que tudo se imobiliza num silêncio polar. Procurou um<br />
romance tropical. Encontrou nele um sol de gelo, uma<br />
59