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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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Um dia cheio. Boas aulas. Finalmente as equações de<br />

primeiro grau entraram na cabeça do filho do Dr. Florindo.<br />

Senta-se à mesa, abre um livro e torna a fechá-lo em<br />

seguida.<br />

E se aproveitasse esta noite para começar o seu livro?<br />

Sim, a idéia é tentadora, a noite está bonita, o silêncio é<br />

absoluto.<br />

Acende o fogareiro para aquentar água para o café. Café<br />

dá inspiração.<br />

Tira da gaveta um maço de papéis. Bota uma pena nova<br />

na caneta e resolve começar o famoso prefácio de “O<br />

Observador de Sírio”.<br />

Hesita um instante. Prefácio ou antelóquio? Melhor<br />

escrever antelóquio. É menos vulgar e fica mais sonoro.<br />

Escreve com letras de imprensa, graúdas e caprichadas:<br />

ANTELÓQUIO.<br />

Olha para a lombada dos livros na prateleira para criar<br />

coragem, fica alguns segundos mordendo a ponta da caneta,<br />

pensativo. Depois escreve:<br />

“Apresentando este modesto livrinho, fruto...”<br />

Mas fruto de quê? Não serve. Risca o que escreveu. Nova<br />

folha de papel. Repete o título e recomeça:<br />

“Antes de iniciar a narrativa...”<br />

Qual! Também não presta. O livro tem de sair fora dos<br />

moldes comuns. O melhor é atacar o assunto diretamente.<br />

Crava a pena no papel, que geme. A pena desliza:<br />

“A vida, prezado leitor, é uma sucessão de<br />

acontecimentos monótonos, repetidos e sem imprevisto.<br />

Por isto alguns homens de imaginação foram obrigados<br />

a inventar o romance.<br />

O Homem, na Terra, nasce, vive e morre sem que lhe<br />

aconteça nenhuma dessas aventuras pitorescas de que<br />

os livros estão cheios.<br />

Debalde os romancistas tentam nos convencer de que<br />

a vida é um romance. Quando saímos da leitura duma<br />

história de amor, ficamos surpreendidos ao nos<br />

encontrarmos na vida real diante de pessoas e coisas<br />

absolutamente diferentes das pessoas e coisas das<br />

fábulas livrescas.<br />

Repito: a vida é monótona. Queres um exemplo<br />

frisante, vivido, observado, verificado? Ei-lo, leitor<br />

amigo: Moro numa rua suburbana cujo ponto<br />

culminante é a janela do meu quarto. E que vejo eu do

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