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escada. O corredor está sombrio. Lá dentro, D. Eudóxia,<br />
enrolada no seu xale, balança a sua cadeira. Enxerga-se pelo<br />
vão da porta um pedaço da rua e, lá do outro lado, a porta da<br />
casa da viúva Mendonça. De quando em quando passa alguém<br />
na calçada.<br />
— Que é que achas? — pergunta Noel.<br />
Os olhos de Fernanda brilham foscamente na sombra.<br />
— Acho que vai bem. Agora é ter força de vontade e<br />
continuar. Quantas páginas escreveste?<br />
— Vinte. Foi um esforço danado. A todo o momento eu<br />
estava caindo em narrações autobiográficas, contando coisas<br />
da minha infância. De repente comecei a sentir que perdia o<br />
contato com a realidade e que eu já estava enveredando para<br />
o domínio das fadas. O meu herói já não tinha consciência da<br />
sua miséria...<br />
Fernanda sorri e pensa: “Quando a gente nunca sentiu a<br />
miséria, nem sequer a pode imaginar...”<br />
Noel continua:<br />
— Sentia-se feliz porque lhe davam paz para sonhar. A<br />
miséria de sua casa era uma miséria dourada. Ele esquecia a<br />
mulher, os filhos e a falta de emprego e começava a recordar<br />
a infância com os seus mistérios e os seus contos de fada...<br />
Pausa. Noel fala sem olhar para Fernanda. Lá de dentro<br />
vem o baque da cadeira de balanço e, de quando em quando,<br />
um pigarro de D. Eudóxia.<br />
— E o mais alarmante — prossegue Noel — é que o meu<br />
homem se negava a reconhecer a sua condição de<br />
desempregado, relutava em ver a sua necessidade. Até a fome<br />
para ele era uma ilusão...<br />
— Provavelmente escreveste depois dum almoço bem<br />
farto..<br />
Ȧ voz é de Fernanda — pensa Noel, olhando para a porta<br />
— mas estas palavras não são parecidas com ela. Tão amargas,<br />
tão irônicas, tão áridas... Noel volta para a amiga o rosto<br />
doloroso.<br />
— Desculpa — diz Fernanda — eu não quis te magoar...<br />
A fisionomia dela está serena. Noel contempla-a<br />
demoradamente. A penumbra dá-lhe mais coragem de encarar<br />
a companheira.<br />
O silêncio envolve-os como uma carícia inquietadora.<br />
Sim, o silêncio, porque o bam-bam cadenciado da cadeira já se<br />
integrou no silêncio geral.<br />
O romance fica esquecido. Noel sente que agora em todo<br />
o seu ser só existe lugar para um desejo — um desejo sem<br />
nome ainda, mas delicioso, envolvente, inquietantemente<br />
misterioso.<br />
— Fernanda... — diz ele. E não reconhece o som da<br />
própria voz. — Hoje papai me ofereceu um lugar no escritório,<br />
talvez mesmo sociedade...<br />
Pausa. Outra vez o silêncio. E depois a voz calma de<br />
Fernanda: