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haverá a mesma incompreensão, mas separada por uma<br />
distância incomparavelmente maior. Se o homem de Sírio<br />
cuspisse água para a Terra, os habitantes do nosso planeta<br />
naturalmente se voltariam para o alto e diriam nomes feios...<br />
O professor está contente com a comparação. Fica a pensar no<br />
livro. Qualquer dia vai começar. Naturalmente escreverá um<br />
prefácio. É preciso explicar... Entrar assim de repente no<br />
assunto pode chocar o leitor.<br />
Debruça-se à janela. A velha de preto, a moça bonita e o<br />
rapaz barulhento estão ao redor da mesa. Mais adiante, o<br />
homem do gramofone, mais a mulher e os filhos, acabam de<br />
almoçar. Na janela da casa próxima, um guri de cara amarela<br />
e triste olha para a rua, com o nariz apertado contra a vidraça<br />
encardida. Calma nos quintais. O pombal de D. Veva está<br />
silencioso. Céu sem nuvens. Sol intenso.<br />
Pa r a que se não me confira a pecha de fantasista<br />
descabelado... — ou melhor: Para que se não diga que sou um<br />
desvairado engendrador de ficções.<br />
Clarimundo sorri interiormente, satisfeito.<br />
Bom início para um prefácio.<br />
D. Eudóxia toma a sua canja. Fernanda e Pedrinho<br />
comem carne assada com feijão e arroz. Hoje veio macarrão<br />
nas marmitas e, como Fernanda trouxe dum restaurante uma<br />
galinha assada, o almoço tem ares de banquete.<br />
— Olha — avisa Fernanda — hoje vou a Ipanema.<br />
Pedrinho dá de ombros:<br />
— Por mim...<br />
D. Eudóxia ergue os olhos de mártir.<br />
— Ele vai?<br />
A voz de Fernanda é resoluta e firme:<br />
— Vai.<br />
Ele é Noel. Combinaram um encontro. Não se vêem há<br />
uma semana, devem ter muita coisa a se dizerem. Livros lidos<br />
durante a semana, impressões... E depois — pensa Fernanda —<br />
Noel precisa de quem o anime. É tão desamparado, tão sem<br />
vida, tão sem energia...<br />
D. Eudóxia diz num suspiro tudo quanto calou em<br />
palavras. Fernanda não teme atacar o assunto cara a cara.<br />
— Que é que tens, mamãe? Diz logo. Nada de segredos.<br />
Seus olhos se focam no rosto da mãe. D. Eudóxia olha<br />
para o prato.<br />
Pedrinho luta com uma fita de macarrão e diz, meio<br />
engasgado:<br />
— Deixa essa caduca...<br />
— Vamos, mamãe. Despeje logo...<br />
D. Eudóxia hesita. Mas o seu ressentimento por fim acha<br />
expressão.<br />
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