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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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— Não leias depois do almoço que faz mal, — aconselha<br />

Laurentina ao marido, que está com a cabeça enterrada num<br />

livro.<br />

João Benévolo mal e mal ergue os olhos.<br />

— Almoço?<br />

A sua pergunta exprime admiração, pois comeram tão<br />

pouco... O restaurante mandou um pingo de comida por dois<br />

mil-réis.<br />

João Benévolo torna a focar a atenção no livro.<br />

Laurentina vai atender o filho que chora no quarto. O<br />

gramofone do vizinho insiste na mesma valsa de todos os dias.<br />

Ouve-se o estalar das asas das pombas de D. Veva.<br />

Napoleãozinho chora de dor no estômago, choro manso,<br />

fraco, tremido. As lágrimas lhe correm pelo rosto magro.<br />

Laurentina dá ao filho um pouco dágua com gotas de elixir<br />

paregórico.<br />

O relógio bate uma hora e o som fica ecoando pela casa.<br />

Como que despertada pelo ruído, Tina acorda para odiar o<br />

marido. Odiar com um ódio calmo, frio, feito de exasperação,<br />

e de recriminações recalcadas. O gemido do relógio de<br />

ordinário lhe dá vontade de chorar. No entanto agora, ao ouvilo,<br />

tem ímpetos é de ir até a sala arrancar o livro da mão de<br />

Janjoca e mandá-lo para a rua arranjar emprego a todo o<br />

custo. A apatia do marido a exaspera. Ele não quer, não tem<br />

vontade. No fundo prefere ficar ali lendo os seus romances,<br />

por pura preguiça. O dinheiro acabou. Restam os últimos nove<br />

mil-réis do empréstimo de Ponciano. Dentro de dois dias não<br />

haverá em casa nem mais um tostão. O leiteiro aparece com a<br />

conta, dia sim dia não. A viúva Mendonça desce todos os dias<br />

para cobrar o aluguel e já anda falando em despejo... Ela não<br />

tem mais um vestido que preste, o Napoleão não tem mais<br />

calçado para ir ao colégio. Se ela tivesse coragem, saía para a<br />

rua a procurar alguma coisa... No entanto, a todas essas, João<br />

Benévolo está na varanda, calmo, lendo, como se tudo corresse<br />

bem. Não sente a miséria. Às vezes até assobia. Ou ri. Hoje de<br />

manhã, botou seis mil-réis fora num livro... Seis mil-réis;<br />

comida para dois dias! E agora está lendo o livro<br />

tranqüilamente, como se não estivesse há seis meses sem<br />

emprego, como se a família vivesse na fartura...<br />

João Benévolo encontra-se no albergue “Almirante<br />

Benbow ” disfarçado de bucaneiro. Pela janela se avista a baía.<br />

O mar é verde; as montanhas, azuis: (A paisagem na mente de<br />

João Benévolo é um desenho simplista colorido por uma<br />

criança). O capitão anda caminhando pelos arrecifes, de luneta<br />

na mão, esperando o misterioso marinheiro da perna de pau. É<br />

como a história ainda não se esboçou com nitidez, como ainda<br />

não se revelou o herói, João Benévolo se introduz nela como<br />

uma personagem clandestina que olha as pessoas e as coisas,<br />

preparado para, dum momento para outro, meter-se na pele do

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