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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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coralino duma casa nova. A faixa de cimento corre na frente<br />

do automóvel, torcendo-se como uma enorme jibóia cinzenta.<br />

Um automóvel bege cruza pela baratinha de Salu em sentido<br />

contrário, veloz. O horizonte está cada vez mais afogueado. A<br />

ponta do sol começa já a desaparecer na linha do horizonte,<br />

Longe, a cidade parece uma pintura de biombo chinês.<br />

Salu não pode afugentar da mente a imagem de Chinita.<br />

É uma doença que ele agora tem no corpo, uma obsessão. Está<br />

todo impregnado de Chinita. Esta tarde cariciosa, com os seus<br />

perfumes tépidos, o seu colorido forte, a sua névoa, e o seu sol<br />

de brasa — só pode avivar-lhe o desejo. Salu pensa na<br />

namorada. Num cartaz a figura duma jovem de maiô<br />

recomenda uma praia próxima. Salu recorda as cenas da<br />

piscina, os contatos deliciosos debaixo dágua, as palavras<br />

cochichadas, as insinuações...<br />

Mal se ouve o ruído do motor. Acelera a marcha do<br />

carro, e lança um novo olhar para a paisagem. O trenzinho da<br />

Tristeza passa apitando. A noite desce de mansinho.<br />

A lua brilha sobre a Travessa das Acácias.<br />

Pela calçada passam raparigas de braços dados, sob as<br />

janelas iluminadas. Na loja Ao Trovão da Zona um negro<br />

bêbedo arranca duma cordeona acordes sem sentido. O<br />

Capitão Mota está sentado com a mulher à frente da casa. D.<br />

Veva, à sua janela, queixa-se para o vizinho do moleque do<br />

bodoque.<br />

— Pois aquele negro sem-vergonha não deixa o meu<br />

pombal em paz.<br />

A luz dos combustores é fraca e amarelenta. Por cima<br />

dos telhados estende-se o céu claro, todo borrifado de<br />

estrelas. E na travessa tranqüila a janela que está mais perto<br />

do céu é a do Prof. Clarimundo.<br />

Antes de ir para a aula, o professor recebe a visita<br />

habitual do sapateiro Fiorello.<br />

— É como lhe digo, seu Fiorello, no fundo isso é uma<br />

questão de boa vontade.<br />

Fiorello faz um gesto teatral.<br />

— Mas o povo era indisciplinado...<br />

— O povo sempre foi indisciplinado... Panem et<br />

circenses... é o que querem.<br />

Fiorello dá de ombros. Panem et circenses? Ele não<br />

entende francês.<br />

— Mussolini endireitou a Itália. O senhor veja...<br />

Mas Clarimundo está firme no seu ponto de vista:<br />

— Não acredite, seu Fiorello. Isso são coisas de jornal.<br />

— Ma...ma...<br />

Fiorello está tão excitado que não encontra palavras. O<br />

professor é um homem muito instruído, tale e cosa, mas neste<br />

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