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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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Teotônio faz um gesto de perdão.<br />

— Está bem. Obrigado. Já vou.<br />

Os óculos tornam a fuzilar e Branca, com o seu triste<br />

vestido marrom, desaparece por trás da porta que se fecha.<br />

Deus há de compreender — reflete Leitão Leiria. — Ele<br />

que fez o homem, que o conhece como um bom mecânico<br />

conhece o mais íntimo parafuso da máquina que construiu<br />

(Teotônio sorri interiormente diante da comparação bonita,<br />

nascida espontaneamente) — Deus há de saber que a carne é<br />

fraca. Enfim, um homem de negócios, um businessman, como<br />

dizem os americanos, precisa de distrações, de derivativos.<br />

Não é só trabalhar como um burro, que isso não dá certo. E,<br />

ademais, quando ele entra no prédio n.° 143 (será o primeiro<br />

ou o segundo andar?) há de deixar a alma na porta. Quem vai<br />

prevaricar é a carcaça mortal. A alma de Teotônio Leitão<br />

Leiria pertence à sua Dodó e a Deus. Para a vida e para a<br />

morte<br />

Ṗensando em Santa Maria Egipcíaca, Teotônio mira-se no<br />

espelho do porta-chapéus, conserta o plastron e sai.<br />

As máquinas ainda metralham. Leitão Leiria olha de viés<br />

para as pernas de Fernanda e um pensamento mau (quem é<br />

que pode governar os pensamentos?) lhe cruza a mente: Se<br />

e s s a menina quisesse, eu arranjava um apartamento<br />

discreto, uma baratinha Chevrolet... Mas o Anjo da Guarda<br />

particular de Teotônio comparece com a esponja da<br />

purificação e apaga-lhe da mente a idéia suja.<br />

Na galeria, Teotônio detém-se e baixa o olhar para o<br />

salão grande da loja. Longas, longas prateleiras de vidro,<br />

mostradores faiscantes com frascos coloridos — Guerlain,<br />

Coty, Myrurgia, Lubin, Caron — sedas, roupas feitas, gravatas,<br />

colarinhos. O pavimento é de ladrilho colorido. Burburinho,<br />

mulheres de vestidos de muitas cores, confusão de vozes. Os<br />

caixeiros passam apressados dum lado para outro. Um pretinho<br />

vestido de groom (idéia de D. Dodó) passa sobraçando caixas<br />

brancas e compridas. A registradora da caixa tilinta, a gaveta<br />

salta. Chegam até os ouvidos de Teotônio farrapos de diálogos:<br />

— ...não temos mais... — ...muito caro...<br />

— ...bondade de examinar...<br />

— ...vinte mil-réis...<br />

— ... seda para...<br />

— ... estrangeiro legítimo...<br />

— ...que lindo!<br />

Teotônio esfrega as mãos, chupa forte o charuto. Onde<br />

estará a Dodó? Seus olhos procuram no meio do<br />

formigamento. Lá embaixo uma mão enluvada se ergue para<br />

ele. Ah! Dodó! Teotônio desce, rapidamente, as escadas.<br />

— Minha querida.<br />

Beija-lhe a testa.<br />

— O meu filho está muito cansadinho?...<br />

Teotônio suspira. Um inferno! Faturas, agentes de<br />

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