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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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Lado a lado, sentados no mesmo degrau da escada, Noel e<br />

Fernanda se contemplam em silêncio.<br />

O coração dele bate com mais força, porque chegou a<br />

hora de dizer tudo. Ele sente que, se não disser agora, não dirá<br />

nunca mais...<br />

— Fernanda...<br />

A voz lhe sai abafada. Fernanda o interroga com os olhos.<br />

Noel chega a sentir no rosto o bafo morno da respiração dela.<br />

E esta proximidade o perturba tanto, que ele perde a fala.<br />

Pausa longa. Vem de fora, pela porta aberta, uma golfada<br />

de vento gelado. Fernanda estremece e se encolhe toda. Lá na<br />

sala de jantar, no escuro, D. Eudóxia resmunga, conversando<br />

com os seus mortos. E a sua cadeira de balanço segue num<br />

ban-ban ritmado e surdo.<br />

Os dois amigos continuam a se olhar em silêncio.<br />

Noel torna a falar.<br />

— Fernanda, quando nós éramos meninos, tu sempre<br />

adivinhavas os meus pensamentos...<br />

Fernanda sacode a cabeça afirmativamente.<br />

Ele prossegue:<br />

— Não podes adivinhar agora o que eu tenho pra te dizer<br />

o que há muito te quero dizer?<br />

Cala-se. A comoção lhe torna a respiração difícil.<br />

Fernanda sorri na sombra, compreendendo tudo. Sem dizer<br />

palavra, pega na mão do amigo e se aproxima mais dele.<br />

Todo trêmulo, admirado da própria ousadia, Noel abraçaa<br />

com suavidade.<br />

Com as cabeças encostadas, silenciosos e comovidos, os<br />

dois ficam olhando para o pedaço de rua que a porta enquadra.<br />

Mas cada um vê uma paisagem diferente.<br />

Noel tem a impressão de que está pairando no ar, liberto<br />

da condição humana. Tudo parece um sonho. Pela primeira vez<br />

a vida se parece com os contos de fadas de sua infância, as<br />

histórias maravilhosas que terminavam assim: “E os dois se<br />

casaram, tiveram muitos filhos e viveram felizes longos anos.”<br />

Fernanda deixa-se ficar passivamente sob o abraço leve<br />

e tímido de Noel. Sente-se ao mesmo tempo feliz e apreensiva.<br />

Compreende que as suas responsabilidades maternais agora<br />

vão ficar maiores. De hoje em diante terá mais um filho para<br />

cuidar. Um filho louro de olhos tristes, um menino que precisa<br />

ser acariciado e repreendido. Mas que importa? Este é o seu<br />

destino.<br />

Noel tem medo de falar porque sua voz pode quebrar o<br />

sortilégio. É que ele sabe que os sonhos do mundo são tão<br />

tênues, tão frágeis, que ao menor sopro se esboroam para<br />

sempre.<br />

Então ele se cala sabiamente e fecha os olhos para<br />

prolongar a ilusão.<br />

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