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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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118<br />

D. Maria Luísa responde:<br />

— Mas ela saiu há duas horas para ir até aí... Não está?<br />

Não sei... — Pausa. — Está bem.<br />

Larga do fone e vai sentar-se numa poltrona.<br />

Chinita mentiu que ia à casa de Vera e não foi. Onde<br />

estará? Decerto com ele. No quarto dele. Como uma mulher da<br />

vida.<br />

Zé Maria — nem há dúvida — está com a amásia...<br />

D. Maria Luísa fica sentada, pensando. A casa enorme<br />

está mergulhada num silêncio ainda maior. Os criados foram<br />

dormir. Ninguém em torno, só ela, neste salão grande. Ela e as<br />

suas recordações do tempo em que tudo andava direito. A<br />

família unida e amiga. A vida tranqüila. Os meninos obedientes<br />

e bons.<br />

Jacarecanga... Quando Chinita nasceu, ela passou mal,<br />

quase morreu. Chinita cresceu forte e bonita. Falou aos oito<br />

meses, todos gostavam dela. Manuel foi criado solto, mas<br />

sempre bonzinho. Zé Maria nunca saía de casa à noite. Tudo<br />

tão calmo, tão amigo... Até que um dia, aquele maldito<br />

dinheiro da loteria. ..<br />

O tempo passa. D. Maria Luísa rumina recordações. E<br />

acha-se a criatura mais infeliz do mundo.<br />

Mas duma maneira obscura, subterrânea e misteriosa,<br />

por se sentir desgraçada, D. Maria Luísa sente-se quase feliz.<br />

119<br />

As últimas pessoas que ficaram no velório desertam às<br />

dez e meia. As chamas das velas estão morrendo.<br />

A mulher de Maximiliano permanece sentada ao lado do<br />

defunto.<br />

Amanhã ao clarear do dia vão trazer o caixão. Depois, às<br />

nove horas, aparece meia dúzia de vizinhos e conhecidos e<br />

levam o seu homem para o cemitério.<br />

A vida vai mudar. Casa nova, cuidar mais dos guris,<br />

costurar e lavar para fora. Quem sabe se fornecer comida em<br />

marmita dá mais dinheiro?<br />

Fazendo mentalmente os seus planos, a mulher se volta<br />

para o morto e por um instante tem vontade de lhe perguntar<br />

como fazia sempre que queria a opinião dele:<br />

— Não achas bom, Maximiliano?<br />

120<br />

O Prof. Clarimundo volta da aula, sobe as escadas com<br />

um fósforo aceso na mão, abre a porta do quarto, entra,<br />

acende a luz e torna a fechar a porta com cuidado.

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