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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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o vidrinho de amoníaco e com uma delicadeza e uma<br />

solicitude desusadas. Depois que voltou a si, lembrando-se dos<br />

dois mil contos, D. Maria Luísa começou a chorar baixinho. Zé<br />

Maria veio para a cabeceira da cama.<br />

— Mas que é isso, Maria Luísa? Não vê que nós estamos<br />

ricos? Agora tudo vai ser bom, a gente tem tudo o que quer...<br />

Mas a mulher continuava a choramingar. Já estava<br />

pensando, com uma dor enorme, no muito que tinham de<br />

gastar dali para o futuro. Todo aquele dinheiro seria um<br />

pesadelo. Os ladrões, os pedinchões, os vendedores ambulantes.<br />

Depois, os bancos não estavam livres de quebrar. Teriam de<br />

mudar de casa, e fazer casa nova custava dinheiro, mobiliar<br />

casa custava dinheiro. Agora os meninos iam pensar que<br />

estavam milionários e desandariam a gastar, a gastar, a<br />

gastar...<br />

Todo o mundo então passou a cumprimentar sorrindo a<br />

família do Cel. Zé Maria. Nos primeiros dias choviam pedidos<br />

de dinheiro. O coronel estava sempre inclinado a dar, a ceder...<br />

Mas a mulher intervinha:<br />

— O Zé Maria não é pai de ninguém, está ouvindo? Toca<br />

pra fora, seu explorador!<br />

Quando se tratava de defender o seu rico dinheiro, ela<br />

tinha assomos insuspeitados de energia. Era capaz de brigar,<br />

de dar bordoada, de enfrentar todos os perigos. Mas vencida a<br />

dificuldade, caía de novo na melancolia e levava a ruminar<br />

tristezas, a pensar em possíveis desastres, a esforçar-se por<br />

descobrir motivos de infelicidade.<br />

Um dia o coronel resolveu mudar de terra e de vida.<br />

— Isto aqui é bom pra o Madruga que gosta de vegetar.<br />

(Não sabia bem a significação de vegetar, mas tinha a certeza<br />

de que não era boa coisa.) Vamos pra Porto Alegre. O Manuel<br />

precisa seguir uma carreira, a Chinita precisa casar bem. E<br />

nós, minha velha, também temos direito de gozar um<br />

pouquinho. Só burro é que passa a vida inteira puxando<br />

carroça.<br />

Chinita e Manuel exultaram. Para ela, Porto Alegre<br />

significava uma vida nova: sociedade fina, automóveis,<br />

passeios, cinemas, bailes, ruas muito movimentadas, luxo e<br />

gozo. Manuel sonhava com farras homéricas.<br />

Quando o coronel anunciou que ia embora, houve<br />

protesto na cidade. Foram comissões à casa dele. “Fique. Nós<br />

queremos que o coronel seja presidente do Recreio<br />

Jacarecanguense. Desista da viagem, Jacarecanga precisa de<br />

homens como o senhor. Ora, não vá, coronel, não vá que nós<br />

somos capazes de fazê-lo prefeito.” Prefeito? Aqui o coronel<br />

titubeou. Mas a promessa era muito vaga, e a casa da família<br />

e a loja estavam vendidas...<br />

No dia da despedida, a plataforma da estação se encheu<br />

de gente. Banda de música. O promotor público fez um<br />

discurso em que lamentava a perda dum dos filhos mais<br />

ilustres de Jacarecanga. (O coronel sentiu um

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