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Olhos semicerrados, Fernanda sorri. É preciso opor à mãe<br />
uma resistência severa, retrucar-lhe com palavras enérgicas<br />
de repreensão ou então resistir assim passivamente, sorrir em<br />
silêncio, com ar indiferente, desligado...<br />
O cantochão continua:<br />
— O seu Fiorello sapateiro também não tem com que se<br />
incomodar... Bate sola, vai beber vinho na venda, nos domingos<br />
joga bocha. Mas a gente...<br />
Fernanda esquece a presença da mãe. O seu pensamento<br />
voa. Uma frase lhe ecoa na memória: “No fundo, Fernanda,<br />
bem no fundo, todos nós vivemos irremediavelmente solitários.<br />
Não há compreensão possível... entre as criaturas...”<br />
Estas palavras vêm acompanhadas duma imagem: um<br />
rosto fino, dois olhos grandes de criança febril, lábios<br />
delgados, testa larga constantemente cortada de rugas de<br />
concentração. Noel...<br />
Fernanda sorri. A memória viaja mais longe. É um dia de<br />
abril. À porta, mamãe recomenda:<br />
— Cuidado com os automóveis e os bondes. Vá direitinho,<br />
não dê conversa pra ninguém.<br />
A menina Fernanda lá vai sob o sol, com a mochila de<br />
livros às costas. O mesmo caminho de todas as manhãs. A<br />
vitrina da “Confeitaria Alemã”, com doces coloridos, cucas e<br />
potes de geléia. No jardim da casa grande de torreão pontudo,<br />
o anjo gorducho de cimento segura o pescoço dum cisne, de<br />
cujo bico voltado para o céu esguicha água... Todos os dias<br />
quando vai para o colégio, a menina Fernanda fica um<br />
instantinho olhando o repuxo. Quase sempre o cachorrão preto<br />
da casa grande corre até o muro, do jardim, ladrando, mete o<br />
focinho por entre as grades e ali fica resfolgando, com a<br />
língua rosada para fora.<br />
Fernanda segue. Passa pela casa de seu Honorato. Noel já<br />
está ao portão, junto da negra velha. (Por que será que a gente<br />
nunca vê a mãe dele?) Noel é pálido, louro e não gosta de<br />
brincar com os outros meninos. Fernanda toma-lhe a mão.<br />
— Vamos?<br />
Noel faz que sim sacudindo a cabeça. E vão...<br />
Ela tem a impressão de levar pela mão um bebê que<br />
ainda está aprendendo a caminhar. No entanto Noel tem dez<br />
anos como ela. Mas é tão triste, tão fraco, tão sozinho, que ela<br />
se sente contente por poder guiá-lo assim, como se fosse uma<br />
irmãzinha mais velha.<br />
— Fernanda!<br />
Um quase grito de alarma. Ela sobe instantaneamente à<br />
tona de seu devaneio. Turbou-se a superfície do lago calmo. A<br />
visão do passado sumiu-se.<br />
— Fernanda, minha filha, depressa! Já deve ser tarde, o<br />
vizinho já saiu pro emprego.<br />
— Que susto a senhora me deu, mamãe! Pensei que fosse<br />
alguma coisa muito séria.<br />
Contra o quadrado luminoso da janela, recorta-se o busto