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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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errado a rua? Dodó! Esta é a última, te juro, meu anjo!<br />

Na frente dum muro longo — PROVEM OS BISCOITOS<br />

AIMORÉ — brinca um grupo de crianças, gritando e cantando.<br />

Teotônio passa pelo meio do bando, ergue a mão para<br />

acariciar a cabeça dum dos pequenos. Mas não, Teotônio, não!<br />

A tua alma ficou ali na esquina, na entrada da rua. Quem<br />

caminha aqui é a matéria, a carne vil que tem necessidades<br />

sujas, Não macules a cabecinha inocente! Pensa estas coisas,<br />

mas sem nenhuma convicção. Seu espírito continua<br />

dolorosamente dividido.<br />

Teotônio procura torturar-se chamando-se de nomes<br />

feios. Adúltero, horizontal (recordações das leituras de Rui<br />

Barbosa), prevaricador, iníquo, alma inquinada (Euclides da<br />

Cunha), ofelhinha tresmalhata (Monsenhor Gross)... E julga-se<br />

menos culpado e menos miserável por se julgar assim<br />

miserável e culpado.<br />

Um automóvel passa. As duas portas dum armazém de<br />

molhados projetam na calçada longas faixas de luz. Lá dentro,<br />

atrás dum balcão, um sujeito de cara vermelha e lustrosa faz<br />

embrulhos. Sentado sobre um barril, um preto mal vestido<br />

empina um copo de cachaça. Uma menina magra de pés<br />

descalços sai do armazém, carregada de pacotes.<br />

Leitão Leiria pensa num artigo: Menores Desamparados.<br />

Monsenhor Gross vai gostar. A incursão à Travessa das Acácias<br />

não ficará perdida. Deus escreve direito por linhas tortas. Ele<br />

vai chamar a atenção do juiz de menores para fatos abusivos<br />

quais sejam (Teotônio compõe mentalmente o artigo) o de<br />

pobres rapariguitas raquíticas e cloróticas que, sem<br />

instrução e sem higiene, são empregadas por pais<br />

inconscientes no serviço diuturno da rua com o perigo de se<br />

prostituírem...<br />

Mas a palavra “prostituírem” invoca magicamente a<br />

imagem da menina de olhos verdes. Outra vez as coxas macias.<br />

Um gozo raro, morno e proibido. Apertar um corpo moço,<br />

penetrar um corpo moço. Cheiros diferentes, voz diferente,<br />

cara diferente, tudo diferente...<br />

Teotônio olha para as portas: 139... Caminha mais alguns<br />

passos: 143. É aqui. Ergue os olhos. Uma casa de dois andares.<br />

Duas janelas iluminadas. Teotônio hesita, imóvel.<br />

Parece que a vida em torno parou. Em todo o universo<br />

agora só uma coisa pulsa e vive: seu coração que bate como<br />

um louco — medo mesclado com contentamento, dúvida e<br />

alvoroço...<br />

Num relâmpago duas imagens visitam-lhe a mente:<br />

Dodó e Monsenhor Gross. Mas se apagam logo. E Teotônio<br />

resolve fazer frente à fatalidade. Entra, sobe a escada, que é<br />

velha e range. Junto da primeira porta bate. Abrem. Uma<br />

mulher magra e alta surge, olhos interrogadores, ar de quem<br />

não conhece e está surpreendida. Teotônio sente o sangue<br />

subir-lhe ao rosto.

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