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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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haveriam” — desamparado e só, Zé Maria capitulou... Desistia<br />

dos cavalos, mas que lhe deixassem então os dourados, ao<br />

menos os dourados...<br />

A criada vem dizer que o almoço está na mesa. É uma<br />

rapariga nova, vestida de preto, avental branco e touquinha na<br />

cabeça. Zé Maria sorri porque lhe vem à lembrança um quadro<br />

do passado: a negra Teresa, de cara inchada e pretusca,<br />

surgindo do fundo da cozinha para dizer com maus modos:<br />

— “O almoço’tá na mesa, não embrome porqu’esfria!”<br />

Zé Maria pensa em Nanette e nas beijocas boas que vai<br />

lhe dar hoje de tarde, se Deus quiser.<br />

— Seu Willy, não é servido?<br />

A cara sem cor parodia uma expressão amável.<br />

— Muito obrigado, bom proveito!<br />

O sol escorre para dentro da sala de refeições. Em cima<br />

da mesa faíscam, sobre a toalha branca, os cristais, as pratas,<br />

as louças. Os móveis são de jacarandá. Berra a pintura<br />

futurista das paredes. O soalho encerado é um espelho. A<br />

terrina de sopa fumega. Tudo fulge, menos a cara de D. Maria<br />

Luísa.<br />

Sentada no seu lugar na frente do marido, ela tem os<br />

olhos baixos, os lábios apertados, o ar doloroso. Parece uma ré<br />

diante do juiz.<br />

— Mas que é que você tem, Maria Luísa?<br />

Zé Maria sabe o que é... Em vinte e oito anos de casados<br />

aprendeu a conhecer a mulher. Pergunta por perguntar.. .<br />

— Não tenho nada. Eu nunca tenho nada.<br />

A criada serve a sopa. Zé Maria desdobra o guardanapo e<br />

ata-o em torno do pescoço. Faz-se silêncio.<br />

Zé Maria, para melhorar o ambiente, faz humorismo:<br />

— Pra que flor na mesa?<br />

Olha para o vaso bojudo onde as zínias amarelas se<br />

misturam com as rosas.<br />

— Eu não como flor!<br />

É o seu grande achado, a sua proeza máxima como<br />

humorista. Goza com a própria piada: soltando uma risadinha<br />

seca e prolongada.<br />

D. Maria Luísa permanece de cara fechada. Novo silêncio.<br />

Agora só se ouve o tantã dos trabalhadores, que estão a bater<br />

martelo no andar superior, e os sons quase musicais que Zé<br />

Maria produz ao sorver as Colheres de sopa.<br />

— Onde é que está Chinita?— indagou ele.<br />

— Recém levantou.<br />

A voz de D. Maria Luísa é dolorida, arrastada — voz de<br />

quem tem prazer em se julgar mártir, voz de quem tem a<br />

preocupação de sempre representar na vida o papel de vítima.<br />

— E o Manuel? — torna a perguntar o pai.<br />

— Não dormiu em casa. (A voz é tão dolorosa que parece<br />

anunciar: “O Manuel amanheceu morto”.) Nunca dorme...<br />

Zé Maria está arrependido de ter feito a pergunta. Agora<br />

nem tem coragem de fazer comentários.

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