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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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Noca solta uma risada gutural.<br />

— Vá já pra cozinha!<br />

Noca retira-se resmungando.<br />

Virgínia vai de novo até a janela. Sol nos montes de<br />

Teresópolis, nas ruas, nos jardins. Que vontade de sair! Sair à<br />

toa, sem rumo, de automóvel ou a pé, para a cidade ou para os<br />

subúrbios — simplesmente sair, deixar esta prisão enervante...<br />

Virgínia percorre mentalmente a lista das amigas. Vai ao<br />

telefone, faz girar o disco.<br />

— Alô? — Pausa. — Alô? É da casa do Dr. Savério? A<br />

Sílvia está? Não? Saiu? — Pausa. — Muito bem. Depois eu<br />

torno a telefonar.<br />

Com uma ruga de aborrecimento na testa, volta para o<br />

divã. Pega de novo no jornal. Duas gravuras chamam-lhe a<br />

atenção. Uma mulher caída no chão... E de repente Virgínia<br />

sente um choque. Aquela cara ali no outro clichê — santo<br />

Deus! — aquela cara morena, os dentes brilhando... Não é<br />

possível! Não é possível! Não é possível! Seus olhos se<br />

agrandam, seu coração pulsa rápido, ela fica por alguns<br />

segundos, estonteada, incapaz dum pensamento, de um gesto.<br />

Suas mãos tremem.<br />

Ela lê... As letras primeiro estão baralhadas, mas depois<br />

se desenham, nítidas... A legenda do clichê não deixa dúvidas:<br />

“Alcides Portela no seu leito de morte.”<br />

E então tudo de repente escurece. Os sons que vêm da<br />

cozinha parecem saídos dum outro mundo remoto, as figuras<br />

da página do jornal se esfumam, confusas. E por muito tempo<br />

Virgínia fica como que suspensa no ar, tendo apenas<br />

consciência das batidas dolorosas de seu coração. Um vulto<br />

passa pela varanda: alguma criada ou Noel? Ela não sabe, não<br />

vê, não ouve.<br />

Passam-se os minutos. Depois vem uma sensação<br />

desconfortante de febre. E de novo Virgínia pega no jornal,<br />

olha o retrato, relê a legenda, procura os pormenores do<br />

drama. Não há dúvida. É Alcides mesmo. O que aconteceu com<br />

aquela outra mulher que o retrato mostra caída de borco,<br />

lavada em sangue, podia ter acontecido com ela... Não. Não<br />

podia. Honorato seria incapaz, não teria coragem. E de súbito,<br />

inexplicavelmente, Virgínia se descobre a odiar o marido com<br />

mais força, como se ele fosse o culpado de tudo.<br />

E durante alguns instantes ela odeia Honorato. Depois o<br />

ódio morre para dar lugar a uma sensação de ciúme, a uma<br />

impressão de quem foi logrado, traído. Então Alcides fazia<br />

com outra mulher o que fazia com ela? Ficava à esquina,<br />

olhando para a outra, esperando a oportunidade para entrar na<br />

casa... E a sensação de ciúme dura apenas alguns segundos<br />

para dar lugar à impressão maior, mais forte, mais dolorosa —<br />

à sensação da perda irreparável, da morte. A morte...<br />

Virgínia dá dois passos às tontas. Tudo isto parece um

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