HIPERLEITURA
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Ana Cláudia Munari Domingos 227<br />
4.2 O escrileitor<br />
“Olhos perscrutando a página, língua quieta”. Foi assim que Alberto<br />
Manguel descreveu o leitor no final da década passada, em seu Uma história<br />
de leitura XX . A descrição comparava o leitor contemporâneo à impressão que<br />
tivera Agostinho, no distante século IV, da leitura de Ambrósio 33 : “Quando<br />
ele lia, seus olhos perscrutavam a página e seu coração buscava o sentido,<br />
mas sua voz ficava em silêncio e sua língua quieta” XXI . A surpresa do pupilo<br />
Agostinho diante do Bispo, seu mestre, calado com o livro entre as mãos,<br />
justificava-se: ler significava pronunciar as palavras em voz alta. O sentido<br />
do texto só era alcançado se o leitor ouvisse o som de cada uma delas. Hoje,<br />
parece-nos estranho pensar que a leitura seja associada ao som como forma<br />
de compreensão, embora possamos encontrar pessoas com dificuldade de<br />
leitura que pronunciam lentamente as palavras, como fazem as crianças<br />
que estão aprendendo a ler.<br />
Toda prática – incluindo aí a leitura e a escrita – pressupõe processos<br />
que se transformam pelo exercício, o que facilmente podemos comprovar<br />
hoje, quando analfabetos digitais até conseguem ler na tela do computador,<br />
mas são incapazes de utilizá-lo como ferramenta para a produção de<br />
textos. Assim, muitas pessoas aprenderam a ler os manuscritos que a Igreja<br />
mantinha em suas bibliotecas, copiados um a um pelos monges, mas não<br />
tinham a habilidade da escrita – desenhar as letras e separar as palavras.<br />
A pontuação, aliás, foi inserida muito mais tarde, justamente para auxiliar<br />
a leitura, quando ela já começava a ser silenciosa.<br />
Daniel Olson, em seu No mundo de papel, mostra como o aprendizado<br />
da escrita – já desde seus primórdios – não apenas promove a inclusão do<br />
indivíduo na sociedade e o seu acesso a modalidades essenciais para o exercício<br />
da cidadania, como também tem desenvolvido formas de racionalidade<br />
e de consciência numa esfera distinta da cultura oral. Olson construiu esses<br />
pressupostos sobre a transformação do mundo pela escrita e os modos<br />
como ela alterou as estruturas de pensamento e conhecimento a partir<br />
33<br />
Que depois foram canonizados, hoje Santo Agostinho e Santo Ambrósio.