Paulo Pontes, A Arte das Coisas Sabidas - Paulo Vieira
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2.2.2 - Paraí-bê-a-bá<br />
Por ser-lhe negado o consumo, uma imensa população vive às voltas com o fantasma da<br />
fome. Para os operários sem qualificação, os trabalhadores da indústria civil, os que recebem<br />
sal rio mínimo, os camponeses não proprietários, a fome é uma realidade presente na vida de<br />
todo dia. Está na cara de todo mundo, está estampada nas ruas, nas figuras desola<strong>das</strong> que va-<br />
gueiam pelas cidades. É só olhar.<br />
Um dos temas do Paraí-bê-a-bá é justamente a fome, apresentada em diversos quadros,<br />
de diversas maneiras. Em Um Edifício... ela é consequência natural da recusa de Gamelão em<br />
participar do mercado de trabalho. Gamelão tem a consciência de que viver não é só comer.<br />
Mas a fome é condição primeira de sua vida, embora ele, repleto de auto-ironia, faça pouco de<br />
sua presença constante. Na abertura da peça, Gamelão e Karla estão dormindo. Gamelão sonha<br />
ser o goleador da seleção tri-campeã. Acerta alguns chutes na sua companheira:<br />
“KARLA - Fica aí curtindo que tá jogando com Pelé e na hora do gol quem paga é minha bun-<br />
da...<br />
GAMELÃO - Jogando com Pelé... Que besteira é essa? Você acha que sou menino para ficar<br />
sonhando com bobagem. Menina, eu já lhe avisei que o organismo humano tem que digerir o<br />
que come antes de dormir. É só ler Dr. Fritz Khan - O Bom Metabolismo - página 843. Enche a<br />
barriga antes de dormir, fica sonhando e depois vem dizer que sou eu que estou com pesadelo.<br />
KARLA - Gamelão, deixa de ser cínico. Você sabe que eu não comi nada.<br />
GAMELÃO - Não comeu porque não tinha comida. Se tivesse, comeria feito uma louca.<br />
(KARLA SE LEVANTA, VAI A UM ESPELHO E COMEÇA A SE OLHAR, DESEMBA-<br />
RAÇA OS CABELOS. GAMELÃO FICA SENTADO NA CAMA).<br />
KARLA - E pra que serve comida?<br />
GAMELÃO - Pra nada. Que sentido tem comer? Nenhum. A única coisa que me faz lembrar<br />
que o homem é animal é comida. Os comunistas vivem dizendo que o problema da humanidade<br />
é a fome... Eu sou contra. A humanidade está morrendo de comida. Os maiores inimigos do<br />
homem são esses caras que vivem dando injeção aos frangos...”