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Paulo Pontes, A Arte das Coisas Sabidas - Paulo Vieira

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tivo era capaz de pronunciar um longo e absurdo discurso, com a empáfia de quem está emitin-<br />

do a sentença definitiva sobre qualquer assunto:<br />

“HOMEM - /.../ E visto que: o denunciante reclama a posse do objeto de nossa discussão, e os<br />

denunciados a negam, alegando tratar-se de seu filho, o cerne da questão está em definir-se,<br />

claramente, se a propriedade em causa é, de fato, um ser humano. Se for ser humano, em gozo<br />

de to<strong>das</strong> as prerrogativas consagra<strong>das</strong> ao ser humano pelo Direito Ocidental, entre elas a de não<br />

ser propriedade de ninguém, a questão se definir em favor dos supostos pais. Mutatis mutandis,<br />

se, em lugar de ser humano, for uma simples coisa, a questão se definir em favor do denuncian-<br />

te, uma vez que a posse, por contrato, de uma coisa equivale à sua propriedade. Ora muito bem,<br />

não encontrando nos autos nada que provasse que estamos em face de um ser humano, fui pro-<br />

curar ajuda nos clássicos do direito e da literatura especializada. Mesmo com esforço, não pude<br />

classificá-lo em nenhuma <strong>das</strong> categorias que definem a pessoa: humana, jurídica, moral, psico-<br />

lógica, gramatical, teological, física etc. Meu esforço era pra encontrar uma fórmula que nos<br />

permitisse concluir que o fenômeno em causa é capaz de alguma modalidade de obrigação e<br />

exercer alguma forma de direito. Foi em vão. A dificuldade, meus senhores, estava em que só<br />

se pode ser uma pessoa de direito se se é uma pessoa de fato. Era necessário primeiro descobrir<br />

se nós estamos diante de uma pessoa humana, do ponto de vista biológico. Saímos então do<br />

terreno do direito. Mas a Justiça não vive de fórmulas jurídicas. Era necessário procurar agasa-<br />

lho conceitual em todos os setores da cultura humanista, mesmo os mais subjetivos. Recordei a<br />

obra de Darwin... E não descobri em nenhuma fase da evolução da espécie uma que, de longe,<br />

se aproximasse <strong>das</strong> características do fenômeno em causa. Repassei, em minha memória, o ad-<br />

mirável estudo de Cousin sobre a humanidade do Corcunda de Notre Dame, e não encontrei<br />

nada que me valesse por que - ora, senhores - o Corcunda de Notre Dame era apenas corcunda,<br />

mas trabalhava tocando aquele sinão de igreja, tinha braços, pernas e - pasmem, senhores - era<br />

um apaixonado, cheio de intensos sentimentos. O meu esforço investigatório me levou até ao<br />

decreto através do qual Calígula deu status político, portanto jurídico, ao seu cavalo Incitatus.<br />

Mas, ora senhores, diferentemente do fenômeno em causa, Incitatus não sofria por falta de<br />

membros; ao contrário, tinha as quatro patas regulamentares, quatro magníficas patas. Não sa-<br />

tisfeito, saí do terreno dos fatos tangíveis e percorri o reino da fantasia. É sabido que Walt Dis-<br />

ney deu status humano aos bichos. Me lembrei de todos os heróis de Disney que eu tanto li em<br />

minha infância - o esperto Pernalonga, o enfezado Popeye, o avarento Patinhas e tantos outros -<br />

mas não encontrei nenhum bichinho que, nem de leve, se assemelhasse com o fenômeno em<br />

causa. Senhores, a nossa Justiça atribui capacidade de direito, mesmo às pessoas que não têm

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