Paulo Pontes, A Arte das Coisas Sabidas - Paulo Vieira
Paulo Pontes, A Arte das Coisas Sabidas - Paulo Vieira
Paulo Pontes, A Arte das Coisas Sabidas - Paulo Vieira
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Egeu é o mentor intelectual e do conflito ideológico, na Vila do Meio-dia. Ele, junta-<br />
mente com Corina e Joana, carregam a dignidade do oprimido, formando o núcleo central de<br />
personagens que estabelecem o conflito com o outro núcleo: Creonte, Jasão e Alma.<br />
Entre esses dois núcleos de conflito se posta uma única e quase despercebida persona-<br />
gem: Boca Pequena. O nome não poderia ser mais revelador da ação que essa personagem rea-<br />
liza: ela é o dedo-duro, a que delata para Creonte o que acontece na Vila do Meio-dia. Por ela,<br />
Creonte fica sabendo do perigo que representa Egeu para o seu domínio. E como verdadeiro<br />
dedo-duro, sabe ser anódino, a ponto de nem ser levada a sério pelos grupos masculino e femi-<br />
nino, nem tão pouco pelo núcleo de Egeu, que equaciona a luta ideológica.<br />
Visto por esse prisma, Gota D'água é mais do que a tragédia amorosa de Medeia. É isso.<br />
Mas é também um retrato do Brasil resultante da ditadura. Por exemplo: Joana, com a sua ação<br />
suicida, pode ser lida como a imagem da guerrilha que buscou tomar o poder sem o apoio ex-<br />
pressivo da sociedade. Egeu, o intelectual de esquerda que não conseguiu sublevar as massas na<br />
medida necessária. Jasão, o homem que veio do povo, e que conhece do povo cada gesto, vende<br />
seu saber em troca de status quo diferenciado no quadro social dominado por Creonte, o déspo-<br />
ta. Assim como a classe média em relação à ditadura.<br />
Eis, então, passo a passo, a segunda ação contida em Gota D'água, que a diferencia <strong>das</strong><br />
outras Medeias:<br />
A) Xulé, logo após a cena de abertura em que as mulheres falam do estado em que Joa-<br />
na se encontra, aparece na oficina de Mestre Egeu, que sente alguma diferença de ânimo no<br />
amigo. Egeu pergunta-lhe se brigou com a mulher, ao que Xulé responde:<br />
“XULÉ - Falhei de novo a prestação da casa.../ Mas, pela minha contabilidade,/ pagando ou<br />
não, a gente sempre atrasa/ Veja: o preço do cafofo era três/ Três milhas já paguei, quer que<br />
comprove?/ Olha os recibos: cem contos por mês/ E agora inda me faltam pagar nove/ Com<br />
nove fora, juros, dividendo,/ mais correção, taxa e ziriguidum/ se eu pago os nove que inda es-<br />
tou devendo,/ vou acabar devendo oitenta e um.../ Que matem tica filha-da-puta/<br />
EGEU - Todo mundo está igual a você/<br />
XULÉ - Não d á É todo mês a mesma luta/ Tem que falar pro homem resolver/ baixar um pou-<br />
co essa mensalidade/ senão vou morar debaixo da ponte/ Não é fácil, mestre Egeu...<br />
EGEU - É verdade/