Paulo Pontes, A Arte das Coisas Sabidas - Paulo Vieira
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idéia da dose definitiva de cocaína está presente como uma enorme ambiguidade: seu objetivo é<br />
destruir o Dr. Fausto, mas seu discurso é no sentido de acabar na televisão programas como o<br />
do Dr. Fausto da Silva, que iludem o senso da realidade, distorcendo assim o que ele (e também<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong>) imagina que seja a linguagem televisiva.<br />
“THIAGO - /.../ Do jeito que as coisas estão agora, só tem duas alternativas: ou uma porrada de<br />
corte bem montadinho, que não dá nem tempo do nego pensar, ou um microfone parado pra<br />
quem quiser apelar. Qual <strong>das</strong> duas alternativas é a melhor? Não pra mim, mas do teu ponto de<br />
vista, qual <strong>das</strong> duas é a melhor? A situação que chegou a sua estação - pique de sete às 9:45 -<br />
responde! Agora, quer saber porque só restam essas duas alternativas?<br />
DIRETOR - Ai, meu saco. Não me vem com essa teoria imbecil, Thiago.<br />
THIAGO - Dr. Celso, sua estação precisa de um pouco de teoria. Televisão é uma telinha pe-<br />
quena, com pouca definição visual. Está numa sala, o sujeito assiste em casa, com gente entran-<br />
do e saindo. Ele liga, desliga, toca o telefone, a antena treme, borra a imagem. Então, Dr. Celso,<br />
pro nego sentar o rabo e ficar vendo aquela telinha, é preciso que ela lhe mostre um troço muito<br />
direto. Uma paulada forte, um negócio que lhe chame a atenção, ou porque diz respeito à sua<br />
vida ou porque é um acontecimento fora do comum. Mas tem que ser mostrado de maneira di-<br />
reta, porque o veículo é pobre visualmente, não resiste a muita elaboração. Qual foi o produtor<br />
que bolou a Copa do Mundo, a Guerra do Vietnam, a ida do homem à Lua, ou o desabamento<br />
do viaduto? Nenhum. Mas por que esses acontecimentos deram índices tão altos de audiência?<br />
Porque a única coisa que difere a televisão dos outros veículos é que ela é capaz de mostrar<br />
imagens e sons de um acontecimento na hora em que ele está acontecendo. Televisão é só isso.<br />
E isso é maravilhoso. A definição visual é baixa, a antena treme, o escambau! Mas dê um acon-<br />
tecimento real a uma câmera de televisão e ela fará o que nenhum outro veículo pode fazer 127<br />
/.../ Tire a realidade da televisão, a realidade crua e nua /.../ e restar apenas naquela telinha pe-<br />
quena dois equívocos. As duas alternativas que eu acabei de lhe mostrar /.../ Na falta de pro-<br />
blemas reais, a televisão forja problemas e discussões com a aparência de reais. O Dr. Fausto<br />
não entende, mas ele tem uma profunda intuição da verdadeira natureza da televisão. Na falta<br />
de um debate sobre um problema real, ele produz uma briga em torno de uma besteira. Aquela<br />
briga, aquela troca de insultos que os trouxas estão pensando em casa que é pra valer, é uma<br />
127 O conceito que <strong>Paulo</strong> <strong>Pontes</strong> desenvolveu através da personagem com certeza valia para o seu tempo. Porém,<br />
a tecnologia demonstra que a televisão suporta algo mais do que simplesmente uma câmera aberta sobre<br />
um acontecimento real.