Paulo Pontes, A Arte das Coisas Sabidas - Paulo Vieira
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1.3 - Um Homem Chamado 320<br />
Talvez exista um ponto na psique humana em que lucidez e loucura se misturem. Este é<br />
um problema para a psicologia. O problema para a arte é encontrar o ponto em que a loucura,<br />
como negação da lucidez, derrame luz sobre a lucidez negada.<br />
320 é o nome de um homem reduzido a qualquer coisa. Um homem que atende pelo<br />
número que lhe deram, não tem individualidade. Está condenado ao denominador comum dos<br />
mortos em vida: os lugares para onde são mandados os p rias, os criminosos ou os indesejados<br />
sem crime.<br />
O quadro é ainda mais sombrio quando um homem chamado 320 vem, não de um lugar<br />
qualquer, mas de um manicômio judiciário.<br />
Eis tudo o que é possível saber sobre ele.<br />
Qual o seu crime? Não se sabe. Por que enlouqueceu? Não se sabe. Um homem que se<br />
chama 320 não possui identidade, portanto, não pode ter história.<br />
Este parece ser o problema a priori desse texto. Como sempre, por economia de ação, a<br />
situação é posta logo na abertura. A rubrica diz que um garoto brinca com um carrinho, enquan-<br />
to come doce de leite na lata. Um rádio está ligado e o locutor avisa que a polícia está interdi-<br />
tando toda a área do Alto da Boa Vista e Barra da Tijuca, para tentar localizar alguns evadidos<br />
do manicômio judiciário. Um corte é dado, e a avó do garoto aparece na mercearia fazendo suas<br />
compras. Outro corte. 320 surge no apartamento do garoto, pedindo um copo d'água. A avó<br />
volta para casa. Encontra a porta fechada. O garoto denuncia a presença do homem estranho. A<br />
avó retorna à mercearia. Lá, já se encontra a polícia. A babá do garoto, adoecida, dorme. A avó<br />
liga. Ela atende. Diz para a avó não se preocupar. Seu pai também terminara num manicômio<br />
judiciário. Enquanto isso 320 e o garoto brincam na sala. O garoto não esconde o medo daquele<br />
estranho invasor. 320, como se fora um menino, simplesmente brinca com o carrinho de bom-<br />
beiro do outro. Fragmento de diálogo entre eles:<br />
“GAROTO - Você não vai andar no meu carro?<br />
320 - Espera, puxa, estou tomando água.<br />
GAROTO - Você toma muita água.<br />
320 - Eu quero ver se nunca mais tenho sede.<br />
GAROTO - Ah, isso é besteira...