Paulo Pontes, A Arte das Coisas Sabidas - Paulo Vieira
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“XULÉ - A gente ia mesmo te procurar,/ não é, Amorim? Falo?... Pra dizer/ que as prestações...<br />
Ninguém tá mais podendo/ pagar. Você veja, já tou devendo...” (p. 63).<br />
É interrompido por Boca Pequena, que não o deixa continuar a reclamação.<br />
L) Creonte discute com Jasão, a propósito de um certo trem atrasado; fala sobre o que é o brasi-<br />
leiro, a sua incapacidade (segundo Creonte) de sacrificar-se pelo bem coletivo:<br />
“CREONTE - /.../ Na segunda guerra,/ só russo, morreram vinte milhões/ Americano, pra ga-<br />
nhar mais terra,/ foi dois séculos capando os culhões/ de índio. japonês gritava “Viva/ o Impe-<br />
rador”, entrava no avião/ pra matar e morrer de fronte altiva/ Na Inglaterra, uma pobre criatura/<br />
de oito anos, há dois séculos atrás/ já trabalhava na manufatura/ o dia inteiro, até não poder<br />
mais,/ quatorze, quinze horas.../.../ Mas o brasileiro não quer cooperar/ com nada, é anárquico, é<br />
negligente/ E uma nação não pode prosperar/ enquanto um povo fica impaciente/ só porque<br />
uma merda de trem atrasa /.../ Vou lhe dizer o que é o brasileiro/ alma marginal, fora-da-lei,/ à<br />
beira-mar deitado, biscateiro,/ malandro incurável, folgado paca/ vê uma placa assim: “não cus-<br />
pa no chão,/ brasileiro pega e cospe na placa/ Isso é que é brasileiro, seu Jasão...”<br />
Mas Jasão sabe que essa é uma visão falsa do ser brasileiro. Sabe que essa é a visão que<br />
a classe dominante vende do povo, inclusive para perpetuar as formas de dominação políti-<br />
co/econômica. E ele que veio do povo, oferece a visão real:<br />
“JASÃO - Não, ele não é isso, seu Creonte/ O que tem aí de pedra e cimento,/ estrada de asfal-<br />
to, automóvel, ponte,/ viaduto, prédio de apartamento,/ foi ele quem fez, ficando co'a sobra/ E<br />
enquanto fazia, estava calado,/ paciente. Agora, quando ele cobra/ é porque já está mais do que<br />
esfolado/ de tanto esperar o trem que não vem...” (p. 95 e ss).<br />
E depois, Jasão ainda lhe aponta o caminho necessário para continuar a dominar e, in-<br />
clusive, eliminar Egeu, deixá-lo falando sozinho:<br />
“JASÃO - Do povo eu conheço cada expressão,/ cada rosto, cara e osso, o sangue, o couro.../<br />
Sei quando diz sim, sei quando diz não,/ eu sei o seu forte, eu sei o seu fraco,/ sei a elasticidade<br />
do seu saco/ Eu sei quando cala ou quando grita/ E o que ele comeu na sua marmita,/ eu sei<br />
pelo bafo do seu sovaco/.../ permita-me então discordar de novo,/ que o senhor não sabe nada