Pedagogia dos monstros - Apresentação
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Mais profundamente, o corpo teratológico provoca<br />
em nós a vertigem da irreversibilidade. Primeiro,<br />
aquilo ali, que não devia estar ali, está lá para sempre.<br />
Não se pode mais apagar. E o “jamais” que ali se inscreve<br />
abre-se desmesuradamente como um bater do<br />
tempo para lá do tempo: aquilo que não passa e faz<br />
passar, o acontecimento absoluto, a morte como caos<br />
impensável.<br />
O corpo normal oferece à visão a experiência<br />
de uma simetria paradoxal, uma simetria assimétrica<br />
que resume todo o mistério do espaço vivido: entre a<br />
esquerda e a direita, entre o alto e o baixo, entre a<br />
frente e o atrás circulam jogos de espelhos explora<strong>dos</strong><br />
pelos acrobatas ou reconheci<strong>dos</strong> na simetria erótica<br />
do sexo e do rosto. É essa quase-coincidência especular<br />
que vai desencadear o tempo; mas é também ela<br />
que vai criar a reversibilidade do tempo, vivida como<br />
crença necessária.<br />
A reversibilidade do tempo é uma componente da<br />
experiência da temporalidade. Sem a convicção vivida<br />
do reversível, da repetição, do sempre possível recomeçar<br />
(em que se funda a reparação moral, jurídica,<br />
existencial) não haveria maneira de medir a irreversibilidade<br />
do tempo; ora, o tempo mede-se porque há<br />
uma “flecha do tempo”, um vector, pontos de partida<br />
e de chegada. Mas se não se pudesse inverter — imaginariamente<br />
e na crença tácita — a marcha do tempo,<br />
não haveria nem retenção nem protenção, nem<br />
simultaneidade, nem irreversibilidade; mas apenas um<br />
escoamento ininterrupto e sem memória, pontual,<br />
irrepetível, inefável — a própria irreversibilidade tornar-se-ia<br />
impensável e inexperienciável.<br />
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