Pedagogia dos monstros - Apresentação
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Speculum naturale (31.126), a visita de um cinocéfalo<br />
hermafrodita à corte francesa. 14 Diz-se que seu órgão<br />
reprodutor masculino é desproporcionalmente grande,<br />
mas o monstro pode usar, à sua escolha, qualquer<br />
um <strong>dos</strong> sexos. Bruno Roy (1975, p. 77) assim escreve<br />
sobre esse fantástico híbrido: “Que advertência ele veio<br />
trazer ao rei? Ele veio para dar testemunho de normas<br />
sexuais... Ele corporificava a punição recebida por<br />
aqueles que violavam tabus sexuais”. Essa estranha<br />
criatura — uma combinação de categorias supostamente<br />
separadas, “masculina” e “feminina” — chega<br />
diante do rei Luís para validar a heterossexualidade,<br />
em detrimento da homossexualidade, com suas supostas<br />
inversões e transformações (“Equa fit equus”,<br />
um escritor latino declarou; “O cavalo torna-se uma<br />
égua”). 15 O estranho monstro com cabeça de cão é<br />
uma censura viva da ambigüidade de gênero e da anormalidade<br />
sexual, tal como o momento cultural de Vincent<br />
as define: heteronormalização encarnada.<br />
A raça tem sido, da Época Clássica ao século XX,<br />
um catalisador quase tão poderoso para a criação de<br />
<strong>monstros</strong> quanto a cultura, o gênero e a sexualidade. A<br />
África tornou-se desde cedo o outro significante do<br />
Ocidente, com o signo de sua diferença ontológica<br />
sendo constituído simplesmente pela cor da pele. De<br />
acordo com o mito grego do Phaeton, os habitantes<br />
da misteriosa e incerta Etiópia eram negros porque<br />
tinham sido queima<strong>dos</strong> pela passagem demasiado próxima<br />
do sol. O naturalista romano Plínio supunha que<br />
a pele não-branca era sintomática de uma completa<br />
diferença de temperamento e atribuía a escuridão da<br />
África ao clima; o intenso calor, dizia ele, tinha queimado<br />
a pele <strong>dos</strong> africanos e malformado seus corpos