Pedagogia dos monstros - Apresentação
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No seu corpo a assimetria acentuou-se, mesmo quando<br />
aparentemente proliferou; duas cabeças num só tronco<br />
rompem a simetria do alto/baixo; mais<br />
profundamente, dão a ver o duplo latente, virtual que<br />
não deve estar à vista. Pois só enquanto virtual (e não<br />
real) ele permite movimento de reversibilidade instantâneo<br />
necessário à travagem do tempo vivido. Um<br />
duplo real, num corpo real, significa um movimento<br />
real no espaço perceptivo: é morte do duplo. A corporalização<br />
<strong>dos</strong> duplos na duplicação ou multiplicação<br />
<strong>dos</strong> órgãos nos corpos monstruosos arrasta a<br />
impossibilidade de operar a reversibilidade das distâncias<br />
no espaço e no tempo: o monstro já não me<br />
“reflecte”, roubou-me o duplo encarnando-o. Mas,<br />
como apesar de tudo é um corpo humano, continua a<br />
reflectir-me — daí a vertigem e o fascínio. Daí o espanto<br />
inesgotável que suscita a visão do monstro:<br />
como se a paisagem que o rodeia fosse afectada por<br />
um factor caótico decisivo que a deveria virar do avesso,<br />
desconjuntá-la, arruiná-la definitivamente. Que ela<br />
continue estável, eis o que nos maravilha.<br />
O surgimento de um duplo num corpo, deformando-o,<br />
abolindo a sua natureza virtual, actualizando<br />
parcialmente a sua latência aniquila o devir-outro do<br />
corpo que vê; e, ao mesmo tempo, solicita-o.<br />
Daí, talvez, a ambivalência da atracção actual pelos<br />
<strong>monstros</strong>: como sintoma de movimentos irreprimíveis<br />
de devir que por todo o lado se esboçam — devir outro<br />
espaço, outro tempo, outros afectos —, e como medo<br />
pânico do caos e da irreversibilidade incontrolada que<br />
esses movimentos podem induzir. Caos que assola já o<br />
nosso tempo; então, como para o esconjurar, criam-se