Pedagogia dos monstros - Apresentação
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O próprio rei foge, aterrorizado, aos gritos, atingindo<br />
os campos, tentando, em vão, falar. Sua boca involuntariamente<br />
acumula baba e, com sua costumeira avidez<br />
por sangue, volta-se contra os carneiros, comprazendo-se<br />
no massacre. Suas vestes transformam-se em pêlos<br />
enrola<strong>dos</strong>, seus braços em pernas. Ele transforma-se<br />
em um lobo, mantendo, entretanto, alguns traços de<br />
sua antiga forma. (OVÍDIO, 1916, I. 231-39)<br />
A horrivelmente fascinante perda da humanidade<br />
de Lycaon simplesmente reifica seu estado moral anterior;<br />
o corpo do rei torna-se todo transparência,<br />
instantânea e insistentemente legível. O poder da<br />
proibição narrativa alcança seu ápice na persistente<br />
descrição da monstruosa combinação que constitui<br />
Lycaon, naquela condição mediana em que ele é tanto<br />
homem quanto animal — natureza dual em uma<br />
vulnerável agitação de afirmação. A fábula termina<br />
quando Lycaon não pode mais falar, apenas significar.<br />
Enquanto os <strong>monstros</strong> nasci<strong>dos</strong> da conveniência<br />
política e do nacionalismo autojustificador funcionam<br />
como convites vivos à ação, em geral militar (invasões,<br />
usurpações, colonizações), o monstro da proibição policia<br />
as fronteiras do possível, interditando, por meio de<br />
seu grotesco corpo, alguns comportamentos e ações e<br />
valorizando outros. É possível, por exemplo, que os<br />
mercadores medievais tenham, intencionalmente, disseminado<br />
mapas que descreviam a existência de serpentes<br />
nas margens de suas rotas comerciais para<br />
desencorajar outras explorações e estabelecer monopólios.<br />
18 Todo monstro constitui, dessa forma, uma narrativa<br />
dupla, duas histórias vivas: uma que descreve como<br />
o monstro pode ser e outra — seu testemunho — que<br />
detalha a que uso cultural o monstro serve. O monstro