Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação ... - Rima Editora
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64 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Lembremo-nos ainda de que a adolescência é a etapa por excelência das<br />
rotulações em nossa vida, quando o julgamento do grupo é tudo o que nos importa.<br />
Tanto que nos sentimos valorizados como sujeitos quando esse rótulo identifica-nos<br />
com um grupo ao qual aderimos por opção, seja ele o dos “emos” ou o<br />
das “patricinhas”, dos “hipongos”, “nerds” ou “vagabundos”... Por outro lado (e esta<br />
era a visão da jornalista que puxou o fio desta narrativa), um rótulo pode imobilizar<br />
o sujeito que o recebe, a ponto de fazê-lo sentir-se aviltado pelo julgamento<br />
de valor expresso. Profundamente mobilizado pelo conteúdo afetivo e pelo imaginário<br />
do nome que o grupo lhe designou, o rotulado pode fechar-se, constrangido,<br />
em sua concha, recusando-se a interagir e chegando mesmo a precisar de<br />
ajuda externa para voltar a se expor no drama dos relacionamentos.<br />
Neste ponto, minha reflexão torna-se memoriosa e retorna ao Cazuza de<br />
Viriato Correia (1968), de onde retirei a epígrafe deste capítulo: uma obra infantojuvenil<br />
que li aos dez anos de idade, no severo instituto de educação onde cursei<br />
o ginásio. Um dos livros formadores de minha vida, lembro-me bem (mesmo porque<br />
os ensinamentos que nos vêm pela via simbólica ficam gravados a fogo, como<br />
imagens, em nossa memória afetiva) dos rótulos escolares colecionados pelo autor<br />
desse clássico que, infelizmente, tem andado ausente das listas de leituras escolares<br />
do ensino fundamental.<br />
Para começar, havia o memorável Pata-Choca, o aluno flácido e passivo do<br />
implacável professor João Ricardo, sempre vitimizado por este e pelos colegas porque,<br />
além de ser lerdo, ainda comia terra. Diferentemente da lentidão cognitiva<br />
de Daniel Pennac, a do Pata-Choca era fruto de um grave quadro de verminose.<br />
Foi preciso que um velho médico que viajava numa “gaiola” e, por acaso, desembarcara<br />
no vilarejo onde Pata- Choca e Cazuza viviam se unisse ao pai do primeiro<br />
para, juntos, desmontarem o rótulo, garantindo assim a transformação integral de<br />
Pata-Choca em Evaristo.<br />
Tendo passado alguns anos sem ver o colega, Cazuza o reencontra e não o<br />
reconhece no garoto esperto e saudável que, certo dia, grita seu nome na rua. Surpreso<br />
com a mudança, Cazuza ainda chama o amigo pelo velho apelido. O pai<br />
de Evaristo escuta a conversa e, ao final, depois que o filho se afasta, intervém junto<br />
a Cazuza, pedindo-lhe que não volte a usar o apelido. Não bastava curar-se dos<br />
vermes e retomar o crescimento normal para que seu filho fosse, de fato, Evaristo.<br />
Era preciso também que ele deixasse de ser o Pata-Choca para o coletivo que assim<br />
o designara um dia. A autoridade a um só tempo assertiva, sábia e afetuosa<br />
do pai de Evaristo me comove, sempre que releio esse trecho. Seu gesto pedagógico<br />
para com Cazuza faz-me pensar que já passa da hora de a escola rever e rea-