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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

como tem o seu cavaleiro, senão em pessoa real. Com isto se conforta a coitada, e<br />

procura consolar-se, por não dar aos pais algumas ruins suspeitas; e, passados dois<br />

dias, aparece em público. Já o cavaleiro é partido; está pelejando na guerra; vence<br />

ao inimigo <strong>de</strong> El-Rei, ganha muitas cida<strong>de</strong>s, triunfa <strong>de</strong> muitas batalhas, volta à corte,<br />

vê a sua dama por on<strong>de</strong> costumava, obtém <strong>de</strong>la anuência para que a peça por<br />

mulher em paga dos serviços que fez; El-Rei, que não sabe quem ele é, não lha<br />

quer dar; porém, apesar disso, ou roubada ou <strong>de</strong> qualquer maneira que seja, a<br />

Infanta casa com ele. O pai chega a estimá-lo por gran<strong>de</strong> ventura, porque se<br />

<strong>de</strong>scobre que o tal cavaleiro é filho <strong>de</strong> um valoroso rei <strong>de</strong> não sei que reino (porque<br />

assento que não virá no mapa). Morre o pai, a Infanta herda, e, em duas palavras, o<br />

cavaleiro sai Rei. Aqui principia logo por conce<strong>de</strong>r mercês ao seu escu<strong>de</strong>iro, e a<br />

todos que o ajudaram a subir a tão alto estado; ao seu escu<strong>de</strong>iro casa-o com uma<br />

aia da Infanta, que sem falta <strong>de</strong>ve ser a mesma que lhe serviu <strong>de</strong> terceira nos<br />

amores, a qual é filha <strong>de</strong> um Duque <strong>de</strong> primeira nobreza.<br />

— Isso e o que eu peço, senhor meu — disse Sancho — é tudo um; joguinho<br />

liso e direito; com tudo isso conto, e tudo há-<strong>de</strong> sair ao pé da letra como Vossa<br />

Mercê o talha, e mais chamando-se o Cavaleiro da Triste Figura.<br />

— Não lhe ponhas dúvida, Sancho — replicou D. <strong>Quixote</strong> — porque, do<br />

mesmo modo e pelos mesmos passos com que te enca<strong>de</strong>ei estes sucessos, sobem<br />

e têm já subido cavaleiros a ser Reis e Imperadores. O que só falta agora é saber<br />

que monarca dos cristãos ou dos pagãos andará em guerra, e terá filha <strong>de</strong> tão<br />

estremada formosura; mas não faltará tempo para se pensar nisso, porque (já te<br />

disse), primeiro que se chegue à corte, é necessário ter cobrado ânimo por outras<br />

partes. Também falta ainda outra coisa: suposto se ache Rei com guerra, e com filha<br />

formosa, e conce<strong>de</strong>ndo que eu tenha adquirido fama incrível por todo o mundo, não<br />

sei bem como se po<strong>de</strong>ria achar para a minha pessoa ascendência real, ou pelo<br />

menos <strong>de</strong> primo segundo <strong>de</strong> Imperador, porque o tal Rei não há-<strong>de</strong> querer dar-me<br />

por mulher a filha, sem previamente saber isso bem ao certo, por mais que lho<br />

mereçam os meus feitos. Estou receando que, por esta falta, venha a per<strong>de</strong>r o que<br />

tão bem tinha já merecido o meu forte pulso. Verda<strong>de</strong> é que eu sou filho <strong>de</strong> algo <strong>de</strong><br />

solar conhecido, <strong>de</strong> posse e proprieda<strong>de</strong>, e dos da tarifa <strong>de</strong> quinhentos soldos; e<br />

bem po<strong>de</strong>ria ser que o sábio, que escrevesse a minha história, <strong>de</strong>slindasse <strong>de</strong> tal<br />

maneira a minha parentela e <strong>de</strong>scendência, que me achasse quinto ou sexto neto <strong>de</strong><br />

Rei; porque te faço saber, Sancho, que há duas espécies <strong>de</strong> linhagem: há a<br />

linhagem dos que <strong>de</strong>rivam a sua <strong>de</strong>scendência <strong>de</strong> Príncipes e Monarcas, mas a<br />

quem a pouco e pouco o tempo foi <strong>de</strong>sgastando até acabar tudo em bico, à laia <strong>de</strong><br />

pirâmi<strong>de</strong>; outra linhagem é a que principiou por gente baixa, e foi trepando até<br />

chegar a gran<strong>de</strong>s senhores. Toda a diferença está em que uns foram e não são, e<br />

outros são, e não eram. Ora eu, po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong>stes, que, bem averiguada a coisa, se<br />

provasse haverem tido nome gran<strong>de</strong> e famoso; com isso se <strong>de</strong>ve contentar o Rei,<br />

que estiver <strong>de</strong>stinado para meu sogro; e se isso se não <strong>de</strong>r, tanto me há-<strong>de</strong> querer a<br />

Infanta, que apesar do pai, e ainda que saiba perfeitamente que sou filho dum<br />

agua<strong>de</strong>iro, me há-<strong>de</strong> admitir por seu senhor e esposo; aliás é o caso <strong>de</strong> a raptar, e<br />

levá-la para on<strong>de</strong> for minha vonta<strong>de</strong>, porque o tempo, ou a morte, há-<strong>de</strong> acabar com<br />

a oposição paterna.<br />

— Para aí vem muito ao pedir — disse Sancho — o que alguns <strong>de</strong>salmados<br />

dizem: "Não peças por favor o que po<strong>de</strong>s haver por força"; ainda que mais assisado<br />

é estoutro rifão: "Mais consegue salteador, do que honrado rogador". Digo isto,<br />

porque se o senhor Rei, sogro <strong>de</strong> Vossa Mercê, não se quiser resolver a entregarlhe<br />

a Infanta, minha senhora, não há senão, como Vossa Mercê diz, roubá-la e pô-la<br />

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