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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

Chegando o cantador a este ponto, pareceu a Dorotéia que não seria bem<br />

que <strong>de</strong>ixasse Clara <strong>de</strong> ouvir tão doce voz, e assim, abanando-a, a <strong>de</strong>spertou,<br />

dizendo-lhe:<br />

— Perdoa, menina, se te <strong>de</strong>sperto, porque o faço para que tenhas o gosto <strong>de</strong><br />

ouvir a melhor voz que talvez hajas ouvido em todos os dias da tua vida.<br />

Acordou Clara toda sonolenta, e da primeira vez não enten<strong>de</strong>u o que Dorotéia<br />

lhe dizia, e, tornando-lho a perguntar, tornou-lho ela a dizer, estando Clara muito<br />

atenta; porém, apenas ouviu dois versos com que o cantador ia prosseguindo,<br />

assenhoreou-se <strong>de</strong>la tão estranho temor, como se estivesse enferma <strong>de</strong> algum<br />

acesso grave <strong>de</strong> quartãs; e abraçando-se estreitamente com Dorotéia:<br />

— Ai! Senhora da minha alma e da minha vida! para que me <strong>de</strong>spertastes?<br />

Que o maior bem que a fortuna me podia fazer por agora era cerrar-me os olhos e<br />

os ouvidos para não ver nem ouvir esse <strong>de</strong>sditoso músico.<br />

— Que dizes, menina? Olha que asseveram que o cantador é um dos moços<br />

das mulas.<br />

— É donatário e senhor <strong>de</strong> muitos lugares — respon<strong>de</strong>u Clara — e do lugar<br />

que na minha alma ocupa com tanta segurança que, se ele o não quiser largar,<br />

nunca lhe será tirado.<br />

Ficou Dorotéia admirada das sentidas razões da donzela, parecendo-lhe que<br />

em muito se avantajavam à discrição que os seus poucos anos prometiam, e assim<br />

lhe disse:<br />

— Falais <strong>de</strong> modo, minha senhora Clara, que não posso enten<strong>de</strong>r-vos:<br />

<strong>de</strong>clarai-vos melhor e explicai-me: que é isso que dizeis <strong>de</strong> almas e <strong>de</strong> lugares, e<br />

<strong>de</strong>ste cantador, cuja voz em tal inquietação vos pôs? Mas por agora nada me digais,<br />

que não quero per<strong>de</strong>r, por acudir ao vosso sobressalto, o gosto que sinto <strong>de</strong> ouvir o<br />

músico, que, ao que me parece, volta ao seu cantar, com versos novos e nova<br />

toada.<br />

— Seja embora — respon<strong>de</strong>u Clara.<br />

E, por não o ouvir, tapou com as mãos ambas os ouvidos, o que também<br />

causou pasmo a Dorotéia, a qual, estando atenta ao que se cantava, viu que<br />

prosseguia <strong>de</strong>sta maneira:<br />

Ó minha doce esp'rança,<br />

que, afrontando impossíveis na verda<strong>de</strong>,<br />

prossegues sem mudança<br />

na senda que traçou tua vonta<strong>de</strong>,<br />

conserva ânimo forte,<br />

inda que surja a cada passo a morte.<br />

Não ganham preguiçosos<br />

triunfo honrado, ou singular vitória,<br />

nem po<strong>de</strong>m ser ditosos<br />

os que, mostrando uma fraqueza inglória,<br />

entregam <strong>de</strong>svalidos<br />

ao ócio vil os lânguidos sentidos.<br />

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