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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

— E como se chamava esse capitão, meu senhor? — perguntou o ouvidor.<br />

— Chamava-se — respon<strong>de</strong>u o cura — Rui Perez <strong>de</strong> Viedma, era natural <strong>de</strong><br />

um lugar das montanhas <strong>de</strong> Leon, e contou-me um caso que se <strong>de</strong>u entre o pai e os<br />

irmãos <strong>de</strong>le, caso esse que, se não me fosse narrado por um homem verda<strong>de</strong>iro<br />

como ele era, eu o tomaria por uma daquelas histórias que no inverno os velhos<br />

costumam contar estando à lareira, pois me disse que o pai havia repartido os seus<br />

bens entre os três filhos que tinha, e lhes <strong>de</strong>ra certos conselhos melhores que os <strong>de</strong><br />

Catão, e o certo é que o meu camarada foi tão bem sucedido no serviço das armas,<br />

por ele escolhido, que em poucos anos, pelo seu valor e esforço, chegou ao posto<br />

<strong>de</strong> capitão <strong>de</strong> infantaria, e esteve no caminho e predicamento <strong>de</strong> ser mestre <strong>de</strong><br />

campo; foi-lhe, porém, afinal, adversa a fortuna, porque on<strong>de</strong> a esperava e a podia<br />

encontrar boa, ele a per<strong>de</strong>u, per<strong>de</strong>ndo a liberda<strong>de</strong>, na felicíssima jornada em que<br />

tantos a alcançaram, que foi na batalha <strong>de</strong> Lepanto: eu perdi-a na Goleta, e <strong>de</strong>pois,<br />

por diversos sucessos, nos achamos camaradas em Constantinopla. Daí veio para<br />

Argel, on<strong>de</strong> sei que lhe suce<strong>de</strong>u um dos mais estranhos casos que têm sucedido no<br />

mundo.<br />

E daqui foi o cura continuando até sucintamente contar o que suce<strong>de</strong>ra entre<br />

Zoraida e o cativo.<br />

A tudo isto prestava tanta atenção o ouvidor, que nunca na sua vida havia<br />

sido tão ouvidor como então. Só chegou o cura até o lance em que os franceses<br />

<strong>de</strong>spojaram os cristãos que vinham na barca, e à necessida<strong>de</strong> e pobreza a que o<br />

seu camarada e a formosa moura ficaram reduzidos, acrescentando que não sabia o<br />

que fora feito <strong>de</strong>les, se haviam chegado a Espanha ou se os franceses os tinham<br />

levado para França.<br />

O capitão, um pouco <strong>de</strong>sviado, estava escutando quanto dizia o cura e<br />

observava os movimentos do irmão, e este, vendo que o cura havia chegado ao fim<br />

do conto, disse, dando um gran<strong>de</strong> suspiro e enchendo-se-lhe os olhos <strong>de</strong> lágrimas:<br />

— Ah, senhor, as novida<strong>de</strong>s que me dais tocam-me tanto, que não posso<br />

<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> mostrá-lo com estas lágrimas que contra toda a minha discrição e esforço<br />

me rebentam dos olhos! Esse tão valoroso capitão, em que me falais, é o meu irmão<br />

mais velho, o qual, como mais forte, e <strong>de</strong> mais altos pensamentos do que eu e o<br />

outro meu irmão mais novo, escolheu o honroso e digno exercício das armas, que foi<br />

este um dos três caminhos que nosso pai nos propôs, como vos disse o vosso<br />

camarada, na história que a nosso respeito lhe ouvistes. Eu segui o das letras, pelas<br />

quais subi, com a ajuda <strong>de</strong> Deus, e dos meus esforços, à alta posição em que me<br />

ve<strong>de</strong>s. Meu irmão mais novo está no Peru, tão rico, que com o que tem mandado a<br />

meu pai e a mim tem satisfeito a parte que levou consigo, e ainda tem posto nas<br />

mãos <strong>de</strong> meu pai meios com que possa fartar a sua natural liberalida<strong>de</strong>, e eu pu<strong>de</strong>,<br />

com a ajuda <strong>de</strong>le, tratar dos meus estudos com mais <strong>de</strong>cência e autorida<strong>de</strong> e chegar<br />

à posição em que me vejo. Meu pai ainda vive, porém matam-no os <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong><br />

saber notícias <strong>de</strong> seu filho primogênito, e pe<strong>de</strong> a Deus, em contínuas orações, que a<br />

morte não lhe feche os olhos antes que veja com vida os <strong>de</strong> seu filho, da discrição<br />

do qual me parece estranho que entre tantos trabalhos e aflições ou prósperos<br />

sucessos se tenha <strong>de</strong>scuidado <strong>de</strong> dar notícias <strong>de</strong> si a seu pai, pois que se ele ou<br />

algum <strong>de</strong> nós as tivéssemos, não teria meu irmão necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> esperar o milagre<br />

<strong>de</strong> cana para obter o seu resgate; mas o que me faz tremer agora é o pensar eu se<br />

aqueles franceses lhe terão dado a liberda<strong>de</strong> ou se o matariam, para encobrir o<br />

roubo que lhe fizeram. Tudo isto fará com que eu siga a minha viagem, não com o<br />

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