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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

qualquer recado amoroso, po<strong>de</strong> tornar a acen<strong>de</strong>r a sua vela, e conversaremos em<br />

tudo o que lhe aprouver e tiver em gosto, não tocando, já se vê, no mais leve<br />

melindre provocador.<br />

— Eu trazer recados, senhor meu? — tornou a dona — mal me conhece<br />

Vossa Mercê; ainda não estou em ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar em semelhantes ninharias,<br />

porque, graças a Deus, tenho a alma nas carnes e todos os <strong>de</strong>ntes na boca, menos<br />

uns poucos, que me caíram com os catarros <strong>de</strong>sta terra <strong>de</strong> Aragão. Mas espere-me<br />

Vossa Mercê um instante, que eu vou acen<strong>de</strong>r a vela e já volto a contar-lhe as<br />

minhas angústias, como a quem po<strong>de</strong> remediar todas as minhas aflições do mundo.<br />

E sem esperar resposta saiu do aposento, on<strong>de</strong> ficou D. <strong>Quixote</strong> sossegado e<br />

pensativo a esperá-la, mas logo lhe sobrevieram mil pensamentos acerca daquela<br />

nova aventura, e parecia-lhe ser mal feito e mal pensado pôr-se em perigo <strong>de</strong><br />

quebrar à sua dama a fé prometida, e dizia consigo:<br />

— Quem sabe se o diabo, que é sutil e manhoso, quererá agora com uma<br />

dona enganar-me, o que não pô<strong>de</strong> fazer com imperatrizes, rainhas, duquesas,<br />

marquesas e con<strong>de</strong>ssas? Tenho ouvido dizer muitas vezes, e a muitos homens<br />

discretos, que ele, se po<strong>de</strong>, antes nos tenta com feias do que com bonitas; e quem<br />

sabe se com esta soleda<strong>de</strong>, esta ocasião e este silêncio não <strong>de</strong>spertarão os meus<br />

<strong>de</strong>sejos, que dormem, fazendo com que no fim da vida venha a cair on<strong>de</strong> nunca<br />

tropecei? E, em casos semelhantes, é melhor fugir do que esperar a batalha. Mas<br />

eu, por força que não estou no meu juízo, visto dizer e pensar semelhantes<br />

disparates, e não é possível que uma dona gordanchuda, <strong>de</strong> toucas brancas e <strong>de</strong><br />

óculos, possa mover nem levantar pensamentos lascivos, nem no mais <strong>de</strong>salmado<br />

peito <strong>de</strong>ste mundo; porventura há em todo o orbe dona que não seja impertinente,<br />

fúfia e melindrosa? Fora, pois, caterva <strong>de</strong> donas, que não servis para regalos<br />

humanos. Oh! que bem que fazia aquela senhora, <strong>de</strong> quem se conta que tinha duas<br />

donas <strong>de</strong> cera, com os seus óculos e almofadinhas, sentadas no seu estrado, como<br />

se estivessem a costurar; e tanto lhe serviam para o respeito da sala as <strong>de</strong> cera,<br />

como as verda<strong>de</strong>iras.<br />

E, dizendo isto, saltou da cama abaixo, com tenção <strong>de</strong> fechar a porta e <strong>de</strong><br />

não <strong>de</strong>ixar entrar a senhora Rodríguez; mas, quando ia a chegar, já a senhora<br />

Rodríguez voltava com uma vela <strong>de</strong> cera branca acesa e, quando viu D. <strong>Quixote</strong> <strong>de</strong><br />

mais perto, envolto na colcha, com os parches e o barrete, arreceou-se <strong>de</strong> novo e,<br />

dando dois passos atrás, disse:<br />

— Estamos seguros, senhor cavaleiro? Não tenho por muito honesto sinal terse<br />

Vossa Mercê levantado do seu leito.<br />

— Isso mesmo é que eu pergunto, senhora — respon<strong>de</strong>u D. <strong>Quixote</strong> — e<br />

<strong>de</strong>sejo saber se posso ter a certeza <strong>de</strong> não ser acometido nem violentado.<br />

— A quem pedis essa garantia, cavaleiro? — tornou a dona.<br />

— A vós mesma — redarguiu D. <strong>Quixote</strong> — porque nem eu sou <strong>de</strong> mármore,<br />

nem vós sois <strong>de</strong> bronze, e não são <strong>de</strong>z horas do dia, é meia-noite, e talvez mais<br />

alguma coisa ainda, ao que imagino, e achamo-nos numa estância mais cerrada e<br />

secreta do que <strong>de</strong>via ser a cova em que o traidor e atrevido Enéias gozou a formosa<br />

e piedosa Dido. Mas dai-me essa mão, senhora, que eu não quero outra garantia<br />

maior que a da minha continência e recato e a que oferecem essas reverendíssimas<br />

toucas.<br />

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