15.04.2013 Views

D.Quixote de La Mancha - Unama

D.Quixote de La Mancha - Unama

D.Quixote de La Mancha - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

www.nead.unama.br<br />

que po<strong>de</strong>riam ser senão fantasmas, e gente do outro mundo? E nisto me certifico,<br />

por ver que, estando pelo espigão do muro do quintal a presenciar os atos da tua<br />

triste tragédia, não pu<strong>de</strong>, por mais que fiz, subir-me acima, nem sequer apear-me do<br />

Rocinante; <strong>de</strong>certo porque me tinham encantado; porque te juro, à fé <strong>de</strong> quem sou,<br />

que, se pu<strong>de</strong>ra subir ou apear-me, eu te houvera vingado <strong>de</strong> maneira que aqueles<br />

foles <strong>de</strong> vento, aqueles malandrinos, se ficassem lembrando da brinca<strong>de</strong>ira para<br />

sempre, ainda que nisso soubera <strong>de</strong>scumprir as leis da cavalaria, que, segundo já<br />

muitas vezes me ouviste, não consentem a cavaleiro pôr mão em quem o não seja,<br />

salvo sendo em <strong>de</strong>fensa da sua própria vida e pessoa, em caso <strong>de</strong> urgente e gran<strong>de</strong><br />

necessida<strong>de</strong>.<br />

— Também eu me vingava se pu<strong>de</strong>sse — disse o outro — quer fosse armado<br />

cavaleiro, quer não; mas não pu<strong>de</strong>, ainda que tenho para mim, que os que se<br />

divertiram à minha custa não eram fantasmas, nem homens encantados, como<br />

Vossa Mercê diz: eram homens <strong>de</strong> carne e osso como nós; e todos (segundo lhes<br />

ouvi enquanto me estavam volteando) tinham os seus nomes; um chamava-se<br />

Pedro Martins, outro Tenório Fernan<strong>de</strong>s; e o ven<strong>de</strong>iro ouvi que se chamava João<br />

Palomeque, o surdo; e por isso, senhor meu, o Vossa Mercê não ter podido saltar o<br />

muro, nem apear-se do cavalo, por outra causa foi, que não por encantamentos. O<br />

que eu tiro a limpo <strong>de</strong> tudo isto é que estas aventuras, que andamos buscando,<br />

afinal <strong>de</strong> contas nos hão-<strong>de</strong> meter em tantas <strong>de</strong>saventuras, que não saibamos qual<br />

é a nossa mão direita. O que seria melhor e mais acertado, segundo o meu fraco<br />

enten<strong>de</strong>r, seria tornarmo-nos para o nosso lugar, agora que é tempo das aceifas, e<br />

<strong>de</strong> cuidar da fazenda, <strong>de</strong>ixando-nos <strong>de</strong> andar <strong>de</strong> seca em meca, e <strong>de</strong> Hero<strong>de</strong>s para<br />

Pilatos, como dizem.<br />

— Que pouco sabes, Sancho — respon<strong>de</strong>u D. <strong>Quixote</strong> — dos achaques da<br />

cavalaria! Cala e tem paciência, que lá virá dia em que vejas por teus olhos que<br />

honrosa coisa é andar neste exercício! Se não, dize-me: que maior contentamento<br />

po<strong>de</strong> haver neste mundo, ou que satisfação po<strong>de</strong> comparar-se à <strong>de</strong> vencer uma<br />

batalha, e triunfar do inimigo? Sem dúvida que nada chega a isso.<br />

— Assim <strong>de</strong>ve ser — respon<strong>de</strong>u Sancho — posto que eu por mim não sei; só<br />

sei que, <strong>de</strong>pois que somos cavaleiros andantes, ou (por melhor dizer) <strong>de</strong>pois que<br />

Vossa Mercê o é (que eu, à minha parte, não há por que me entre em tão honroso<br />

rol), nunca jamais temos vencido batalha alguma, salvo a do biscainho, e ainda<br />

<strong>de</strong>ssa saiu Vossa Mercê com meia orelha, e meia celada <strong>de</strong> menos; <strong>de</strong> então para<br />

cá tudo tem sido bordoada e mais bordoada, murros e mais murros; e eu, ainda por<br />

cima <strong>de</strong> tudo, manteado, e por pessoas encantadas, <strong>de</strong> quem me não posso vingar<br />

para saber até on<strong>de</strong> chega o gosto <strong>de</strong> vencer inimigos, como Vossa Mercê diz.<br />

— Essa é que é a minha pena, e a que tu <strong>de</strong>ves também sentir, Sancho —<br />

respon<strong>de</strong>u D. <strong>Quixote</strong>; — porém daqui em diante eu procurarei haver às mãos<br />

alguma espada feita com tal mestria, que ao que a tiver consigo se não possa fazer<br />

nenhum gênero <strong>de</strong> encantamento. Até não era impossível que a ventura me<br />

<strong>de</strong>parasse a <strong>de</strong> Amadis, quando se chamava "O Cavaleiro da ar<strong>de</strong>nte espada"; foi a<br />

melhor que teve cavaleiro algum do mundo, porque, além <strong>de</strong> ter a virtu<strong>de</strong> referida,<br />

cortava como uma navalha, e não havia armadura, por forte e encantada que fosse,<br />

que lhe resistisse.<br />

— Eu sou tão venturoso — disse Sancho — que, ainda que isso fosse, e<br />

Vossa Mercê viesse a achar espada semelhante, só viria a servir e aproveitar aos<br />

armados cavaleiros, assim como o bálsamo; e aos escu<strong>de</strong>iros, que os papem os<br />

lobos.<br />

77

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!