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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

livrar do golpe. Camila tão ao natural representava todo aquele fingimento, que, para<br />

lhe dar mais cor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, o quis rubricar com o seu próprio sangue, porque,<br />

vendo que não podia alcançar a Lotário, ou fingindo que o não podia, disse:<br />

— Já que a sorte não <strong>de</strong>ixa que o meu justo <strong>de</strong>sejo se satisfaça em cheio,<br />

pelo menos nunca há-<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r tanto, que me ve<strong>de</strong> em cheio satisfazê-lo.<br />

E forcejando para soltar a daga, que Lotário lhe tinha presa, arrancou-lha com<br />

efeito, e, dirigindo-lhe a ponta para parte on<strong>de</strong> a ferida não viesse a ser muito<br />

perigosa, cravou-a entre o peito e o sovaco esquerdo, <strong>de</strong>ixando-se logo cair no<br />

pavimento como <strong>de</strong>smaiada.<br />

Estavam Leonela e Lotário pasmados do que viam, e todavia duvidosos ainda<br />

entre crer e <strong>de</strong>screr, apesar <strong>de</strong> verem Camila estendida em terra, e banhada no seu<br />

sangue. Aco<strong>de</strong> Lotário açodado e espavorido, e quase sem alento, a arrancar a<br />

daga; mas, reconhecendo a pequenez da ferida, respirou, ficando a admirar cada<br />

vez mais a sagacida<strong>de</strong>, a prudência e a extraordinária discrição da sua Camila; e<br />

para representar também o seu papel, começou a fazer uma estirada lamentação<br />

sobre o corpo da formosa, como se estivera <strong>de</strong>funta, soltando muitas maldições não<br />

só contra si, mas também sobre quem a havia obrigado àqueles extremos. Como<br />

sabia que o escutava o amigo Anselmo, coisas dizia que mais dó faziam <strong>de</strong>le<br />

próprio, do que <strong>de</strong>la, ainda que a julgassem morta.<br />

Leonela tomou-a nos braços, e a pôs no leito, rogando a Lotário fosse buscar<br />

facultativo que viesse curar secretamente a doente. Consultava-o também sobre o<br />

que haviam <strong>de</strong> dizer a Anselmo daquele golpe <strong>de</strong> sua ama, se ele viesse antes <strong>de</strong>la<br />

curada. Lotário respondia que fizessem o que lhes parecesse, que ele por si não<br />

estava com cabeça para acertar conselhos; que só lhe dizia que se <strong>de</strong>sse pressa em<br />

vedar-lhe o sangue, porque ele ia fugir para on<strong>de</strong> ninguém o visse; e, com mostras<br />

da maior consternação, saiu.<br />

Logo que se achou só, e on<strong>de</strong> ninguém o podia ver, não fazia senão benzerse,<br />

maravilhado da esperteza <strong>de</strong> Camila, e dos modos tão apropriados <strong>de</strong> Leonela.<br />

Regalava-se, consi<strong>de</strong>rando quão inteirado não ficaria Anselmo <strong>de</strong> que tinha por<br />

mulher uma segunda Pórcia; já lhe tardava o tornarem a ver-se juntos, para<br />

festejarem entre si a mentira e a verda<strong>de</strong>, mais bem cal<strong>de</strong>adas uma com a outra, do<br />

que jamais se pu<strong>de</strong>ra imaginar.<br />

Leonela, que tinha já vedado o sangue da ama, sangue que não passava do<br />

indispensável para crédito do embuste, lavou a ferida com um pouco <strong>de</strong> vinho, e a<br />

ligou o melhor que soube, dizendo, enquanto a estava curando, coisas, que só por<br />

si, ainda que mais prece<strong>de</strong>ntes não houvera, bastariam para capacitar Anselmo <strong>de</strong><br />

que possuía em casa uma verda<strong>de</strong>ira estátua da honestida<strong>de</strong>. Com as palavras <strong>de</strong><br />

Leonela travavam outras <strong>de</strong> Camila, chamando-se covar<strong>de</strong> e pusilânime, pois lhe<br />

faltara o valor quando mais precisava <strong>de</strong>le, para <strong>de</strong>struir uma existência que tanto<br />

lhe pesava. Pedia à serva o seu parecer sobre dizer ou calar todo aquele sucesso<br />

ao marido. A serva respondia-lhe que lhe não dissesse nada, porque dizer-lho era<br />

pô-lo em obrigação <strong>de</strong> vingar-se <strong>de</strong> Lotário, o que lhe seria muito arriscado, e que<br />

toda a mulher capaz estava obrigada a não dar ao seu homem ocasiões para<br />

<strong>de</strong>savenças, antes lhas <strong>de</strong>via escon<strong>de</strong>r todas.<br />

Respon<strong>de</strong>u a senhora que lhe parecia muito bem esse voto, e o seguiria; mas<br />

que, em todo o caso, era necessário ver o que se diria a Anselmo sobre a causa<br />

daquela ferida, que ele forçosamente havia <strong>de</strong> ver. A isso respondia Leonela que lá<br />

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