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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

porque não hão-<strong>de</strong> permitir os céus que se faça tanto mal à terra, como seria cortar<br />

os racimos ver<strong>de</strong>s da mais formosa vi<strong>de</strong> dos vinhedos. Desta formosura, que a<br />

minha língua não po<strong>de</strong> assaz encarecer, se enamorou um infinito número <strong>de</strong><br />

príncipes, tanto naturais como estrangeiros, entre os quais ousou levantar os seus<br />

pensamentos ao céu <strong>de</strong> tanta beleza um cavalheiro particular que na corte vivia,<br />

confiado na sua mocida<strong>de</strong>, na sua bizarria e nas suas muitas prendas e encantos,<br />

facilida<strong>de</strong> e felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> engenho; porque, <strong>de</strong>vo dizer a vossas gran<strong>de</strong>zas, se os<br />

não enfado, que tocava guitarra <strong>de</strong> modo tal, que não parecia senão que a fazia<br />

falar, e além disso era poeta e gran<strong>de</strong> bailarino, e sabia fazer uma gaiola <strong>de</strong><br />

pássaros, que só com essa prenda podia ganhar a vida, quando se visse em<br />

extrema necessida<strong>de</strong>; todos estes predicados e prendas bastam para <strong>de</strong>rrubar uma<br />

montanha, quanto mais uma <strong>de</strong>licada donzela. Mas toda a sua gentileza, todo o seu<br />

donaire, todas as suas graças e prendas, <strong>de</strong> nada lhe serviriam para ren<strong>de</strong>r a<br />

fortaleza da minha menina, se o gran<strong>de</strong> patife e roubador não usasse do remédio <strong>de</strong><br />

me ren<strong>de</strong>r primeiro a mim. Primeiro quis o malandrino e <strong>de</strong>salmado vagabundo<br />

ganhar-me a vonta<strong>de</strong> e enfeitiçar-me, para que eu, mau alcai<strong>de</strong>, lhe entregasse as<br />

chaves da fortaleza que guardava. Em conclusão, adulou-me e ren<strong>de</strong>u-me com não<br />

sei que diches e jóias que me <strong>de</strong>u; mas o que mais me prostrou, o que sobretudo me<br />

seduziu, foram umas coplas que lhe ouvia cantar uma noite das reixas <strong>de</strong> uma<br />

janela, que <strong>de</strong>itava para um beco on<strong>de</strong> ele estava, e que, se bem me recordo ainda,<br />

diziam assim:<br />

Da minha doce inimiga<br />

nasce a dor que a alma aflige,<br />

e por mais tormento exige<br />

que se sinta e não se diga.<br />

Pareceu-me a trova <strong>de</strong> pérolas, e a voz <strong>de</strong> mel, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, vendo o mal<br />

em que caí por estes e por outros versos, tenho consi<strong>de</strong>rado que das repúblicas<br />

bem governadas se <strong>de</strong>vem <strong>de</strong>sterrar os poetas, como Platão aconselhava, pelo<br />

menos os lascivos, porque escrevem umas coplas, não como as do marquês <strong>de</strong><br />

Mântua, que entretêm e fazem chorar as crianças e as mulheres, mas umas<br />

agu<strong>de</strong>zas, que, como brandos espinhos, nos atravessam a alma, e como raios a<br />

ferem, <strong>de</strong>ixando incólume o vestido. E outra vez cantou:<br />

Morte, vem tão escondida<br />

que eu não te sinta apar'cer,<br />

p'ra que o gosto <strong>de</strong> morrer<br />

me não torne a dar a vida.<br />

E <strong>de</strong>ste jaez outras coplas que, cantadas, encantam, em escritas,<br />

suspen<strong>de</strong>m. E então, quando <strong>de</strong>scia a compor um gênero <strong>de</strong> versos que em<br />

Candaia se usava, e a que chamavam seguidillas, ali era o pular dos corações, o<br />

retouçar do riso, o <strong>de</strong>sassossego dos corpos, e finalmente o azougue <strong>de</strong> todos os<br />

sentidos! E assim digo, senhores meus, que os tais trovadores com justo motivo se<br />

<strong>de</strong>vem <strong>de</strong>sterrar para as ilhas dos <strong>La</strong>gartos; mas não têm eles culpa: quem a tem<br />

são as simples que os louvam, e as tolas que os acreditam, e, se eu fosse a boa<br />

dona que <strong>de</strong>via ser, não me moveriam os seus tresnoitados conceitos, nem<br />

acreditaria que fosse verda<strong>de</strong>iro aquele dizer: vivo morrendo, ardo no gelo, tenho<br />

calafrios no lume, espero sem esperança, parto e fico, e outros impossíveis <strong>de</strong>sta<br />

laia, <strong>de</strong> que os seus escritos estão cheios! Pois, em prometendo o fénix da Arábia, o<br />

fio <strong>de</strong> Ariadne, os cavalos do sol, as pérolas do sul, o ouro <strong>de</strong> Tibar e bálsamo <strong>de</strong><br />

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