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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

também isto não fosse do seu gosto, pelo menos saísse e pedi-lo aos pastores, em<br />

vez <strong>de</strong> lho tirar por força. Agra<strong>de</strong>ceu o nosso oferecimento, pediu perdão do<br />

passado, e prometeu daí em diante obtê-lo pelo amor <strong>de</strong> Deus, sem incomodar a<br />

pessoa alguma. Pelo que tocava à sua habitação, disse que não tinha outra, senão<br />

aquela que se lhe <strong>de</strong>parava on<strong>de</strong> quer que a noite o colhia; e, acabando <strong>de</strong> falar,<br />

<strong>de</strong>satou num choro tão sentido, que, só se fôramos <strong>de</strong> pedra os que lho ouvimos,<br />

po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> o acompanhar, por nos lembrar como o víramos da primeira<br />

vez tão outro <strong>de</strong> agora, porque já lhes tenho dito que era um moço mui gentil e<br />

engraçado, e em seu falar, cortês e concertado, mostrava ser bem nascido e pessoa<br />

mui <strong>de</strong> corte, que, ainda que éramos uns rústicos os que o ouvíamos, tanto avultava<br />

o seu donaire, que até a rústicos se dava a conhecer. Estando no melhor da sua<br />

prática, parou e emu<strong>de</strong>ceu, cravou os olhos no chão por um bom espaço, em que<br />

todos estivemos quietos e suspensos, esperando em que pararia aquele<br />

arroubamento que tanto nos lastimava, porque pelo que lhe víamos fazer <strong>de</strong> abrir os<br />

olhos, tê-los fitos no chão e sem pestanejar um gran<strong>de</strong> pedaço, e outras vezes<br />

cerrá-los, mor<strong>de</strong>ndo os lábios, e arqueando os sobrolhos, facilmente percebemos<br />

que algum acesso <strong>de</strong> loucura o havia tomado. Depressa nos mostrou que nos não<br />

enganávamos, porque se levantou furioso do chão on<strong>de</strong> se tinha <strong>de</strong>itado, e<br />

arremeteu com o primeiro que achou à mão, com tal <strong>de</strong>nodo e raiva, que, se lhe não<br />

acudíramos, o matara a murros e <strong>de</strong>ntadas; e tudo aquilo fazia dizendo ao mesmo<br />

tempo: "Ah! fementido Fernando! aqui, aqui me hás-<strong>de</strong> pagar as injustiças que me<br />

fizeste; estas mãos te hão-<strong>de</strong> arrancar o coração, receptáculo <strong>de</strong> quantas malda<strong>de</strong>s<br />

há, e especialmente <strong>de</strong> traição e enganos." E a estas ajuntava outras razões todas<br />

encaminhadas a dizer mal daquele tal Fernando, e a pô-lo por traidor e fementido.<br />

Deixamo-lo não pouco pesarosos, e ele, sem dar mais palavra, se partiu <strong>de</strong> entre<br />

nós, e se emboscou à carreira por estes matos e brenhas, por modo que não houve<br />

po<strong>de</strong>rmos segui-lo. Daqui enten<strong>de</strong>mos que à mania tinha intervalos, e que algum<br />

chamado Fernando lhe fizera provavelmente alguma tamanha malfeitoria, como se<br />

via pelo <strong>de</strong>sfecho em que <strong>de</strong>ra. De então para cá se reconheceu que assim era,<br />

pelas vezes (que muitas têm sido) que ele tem saído ao caminho, umas a pedir aos<br />

pastores que lhe dêem do que levam para comer, e outras a tirar-lho à força, porque,<br />

quando está com o ataque da loucura, ainda que os pastores lho ofereçam <strong>de</strong> bom<br />

grado, não o admite, e há-<strong>de</strong> por força tomar-lho a mal; e, quando está com siso,<br />

pe<strong>de</strong>-o por amor <strong>de</strong> Deus, cortês e comedidamente, e dá muitos agra<strong>de</strong>cimentos, e<br />

bem regados <strong>de</strong> lágrimas. E em verda<strong>de</strong> vos digo, senhores meus — prosseguiu o<br />

cabreiro — que ontem concertamos, eu e outros quatro pegureiros, os meus dois<br />

criados, e dois amigos meus, <strong>de</strong> o buscarmos até darmos com ele, e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

achado, levarmo-lo (por vonta<strong>de</strong> ou por força) à vila <strong>de</strong> Almodóvar, que fica a oito<br />

léguas daqui, e lá se curará, se é que o seu mal tem cura, ou saberemos quem é,<br />

quando estiver em seu juízo, e se tem parentes a quem se dar parte da sua<br />

<strong>de</strong>sgraça. Aqui está, senhores, o que sei dizer-vos para satisfazer a vossa<br />

curiosida<strong>de</strong>; e enten<strong>de</strong>i que o dono das prendas que achastes é o mesmo que vistes<br />

passar tão ligeiro e <strong>de</strong>scomposto — (porque D. <strong>Quixote</strong> já lhe tinha dito como era<br />

que aquele homem se levava aos saltos pela serra).<br />

Admirado ficou o cavaleiro com a relação do pastor; e aumentou-se nele o<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> saber quem era o <strong>de</strong>sditado louco, e assentou no que já lhe ocorrera, que<br />

era buscá-lo por toda a montanha, sem <strong>de</strong>ixar recanto nem cova por explorar.<br />

Melhor porém o fez a sorte, do que ele esperava, porque naquele mesmo<br />

instante apareceu por uma quebrada da serra o fugitivo mancebo, que vinha falando<br />

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