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D.Quixote de La Mancha - Unama

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www.nead.unama.br<br />

— Alto, senhor governador — acudiu o moço com bom donaire — nada <strong>de</strong><br />

loucuras, e vamos ao caso. Suponha Vossa Mercê que me manda para a ca<strong>de</strong>ia e<br />

que lá me põem a ferros, e que me metem num calabouço, e se impõem ao alcai<strong>de</strong><br />

graves penas se me <strong>de</strong>ixar sair, e que ele cumpre o que se lhe manda; com tudo<br />

isso, se eu não quiser dormir e estiver acordado toda a noite sem pregar olho, será<br />

Vossa Mercê capaz, com todo o seu po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> me fazer dormir contra vonta<strong>de</strong>?<br />

— Isso <strong>de</strong>certo que não — observou o secretário.<br />

— De modo — disse Sancho — que não dormes porque não queres dormir, e<br />

não para me fazer pirraça?<br />

— Pirraça! nem por pensamentos.<br />

— Pois i<strong>de</strong> com Deus — disse Sancho — i<strong>de</strong> dormir para vossa casa, e Deus<br />

vos dê bom sono, que eu não vo-lo quero tirar; mas aconselho-vos, que daqui por<br />

diante não brinqueis com a justiça, porque topareis algum que vos faça pagar cara a<br />

brinca<strong>de</strong>ira.<br />

Foi-se embora o moco, e o governador continuou com a sua ronda, e daí a<br />

pouco apareceram dois aguazis, que traziam um homem agarrado, e disseram:<br />

— Senhor governador, este que parece homem não o é: é mulher, e nada<br />

feia, que anda vestida <strong>de</strong> homem.<br />

Chegaram-lhe aos olhos duas ou três lanternas e, à sua luz, viram o rosto <strong>de</strong><br />

uma mulher <strong>de</strong> <strong>de</strong>zesseis anos, ou pouco mais: escondidos os cabelos numa coifa<br />

<strong>de</strong> seda ver<strong>de</strong> e ouro, formosa como mil pérolas. Contemplaram-na <strong>de</strong> cima até<br />

baixo e viram que trazia umas meias <strong>de</strong> seda encarnada, com ligas <strong>de</strong> tafetá branco,<br />

e franjas <strong>de</strong> ouro e aljôfar; os calções eram ver<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> tela <strong>de</strong> ouro, e uma capa da<br />

mesma fazenda, por baixo da qual vestia um gibão finíssimo <strong>de</strong> branco e ouro, e os<br />

sapatos eram brancos e <strong>de</strong> homem. Não cingia espada, mas sim uma riquíssima<br />

adaga; nos <strong>de</strong>dos muitos e magníficos anéis.<br />

Finalmente, a moça a todos parecia bem e nenhum dos que a viram a<br />

conheceu; os naturais da terra disseram que não podiam imaginar quem fosse, e os<br />

que mais se admiraram foram os que sabiam das burlas que se haviam <strong>de</strong> fazer a<br />

Sancho, porque aquele sucesso não tinha sido or<strong>de</strong>nado por eles; e assim, estavam<br />

duvidosos, esperando em que viria o caso afinal a parar.<br />

Sancho ficou pasmado da formosura da moça e perguntou-lhe quem era,<br />

aon<strong>de</strong> ia e por que motivo se vestia <strong>de</strong> homem.<br />

Ela, com os olhos no chão, com honestíssima vergonha, respon<strong>de</strong>u:<br />

— Não posso, senhor, dizer em público o que tanto me importava que fosse<br />

secreto; uma coisa, porém, quero que se entenda: é que não sou ladra, nem<br />

facínora, mas uma donzela infeliz, a quem a força <strong>de</strong> uns zelos obrigou a romper o<br />

<strong>de</strong>coro que à honestida<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ve.<br />

Ouvindo isto, disse o mordomo para Sancho:<br />

— Man<strong>de</strong> afastar todos, senhor governador, para que esta senhora, com<br />

menos empacho, possa dizer o que quiser.<br />

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